Blá-blá na Alsácia

Sugeri a minha amiga que fossemos a Colmar, uma das joias alsacianas, terra de Auguste Bartoldi, o escultor da Estátua da Liberdade. Pegaríamos o trem? "Que nada. Tenho o aplicativo Blá-blá. Com ele, pagaremos 4 euros cada um e iremos de carro. São a...
Blá-blá na Alsácia

Sugeri a minha amiga que fossemos a Colmar, uma das joias alsacianas, terra de Auguste Bartoldi, o escultor da Estátua da Liberdade. Pegaríamos o trem? "Que nada. Tenho o aplicativo Blá-blá. Com ele, pagaremos 4 euros cada um e iremos de carro. São as maravilhas da economia compartilhada". Lá fomos nós então para estação central de Estrasburgo e, de posse da placa do carro de nosso novo amigo, eis que ele despontou com algum atraso num veículo meio estropiado, mas cheio das gentilezas frívolas que integram o simpático pacote. Logo percebi que o ritual manda observar algumas normas. Mesmo na estratificada sociedade francesa, se sugere trocar dois beijinhos com o novo amigo e ocupar o banco dianteiro. Tratar-se de "tu" – uma raridade entre franceses, quase estritamente reservada a familiares –, e, de preferência, devemos engatar uma conversa pessoal e calorosa, que envolva os pontos de interesse da região. Atenção: sempre nos dirigindo uns aos outros pelo primeiro nome.  Portanto, nada de Monsieur, Madame ou Mademoiselle. 

Como é comum nessas ocasiões, o passageiro dará depois uma nota ao desempenho do motorista e assim se enceta o ciclo virtuoso. Quanto mais pontos acumular, mais dinheiro ele ganhará e maiores serão as chances de que outros usuários se fidelizem. O que não pode acontecer, por exemplo, é que o motorista leve o passageiro até a porta do domicílio, mesmo que esta esteja a poucas centenas de metros da estação. A chuva pode ser inclemente, mas o serviço porta a porta é prerrogativa de taxistas, daí a observância a esses limites ditados pela legislação. O rapaz em referência, pouco à vontade no papel de anfitrião de circunstância, alegava que estava a caminho de uma entrevista de emprego numa cidade vizinha. A dissonância entre quem dizia ser e as parcas leituras que vi no porta-luvas escancarado, certamente que o estressavam sobremodo porque oscilava entre a "persona" que queria impressionar o eventual empregador e o desconforto de um desempregado de velha escola. No fundo, éramos seu campo de prova para ver a que ponto suas patranhas eram convincentes. 

Adorei Colmar. A volta foi tudo menos o artificialismo da ida. Éramos quatro num carrinho climatizado e a motorista era espontânea e naturalmente comunicativa. Para ela, não carecia de fazer esforço algum para anabolizar as credenciais curriculares porque as coisas já estavam boas do tamanho que eram. Verdadeira integradora de mundos diferentes, conversou com os três passageiros coletiva e individualmente e fez com que o tempo parecesse ser a metade do trecho da primeira perna. Não há como negar que todas essas ferramentas, muitas delas gestadas na Califórnia e que traem o jeito despojado de sua gente adorável, vieram para ficar. A ideia de compartilhar combustível, conhecer gente nova e de diminuir o índice de acidentes nas estradas é o que pode haver de luminoso. Embora eu não encarne o típico ator da economia compartilhada em todos os seus moldes e vertentes, a verdade é que me entusiasma tudo que não envolva troca de dinheiro. Gosto desde sempre de vê-lo ser mero instrumento de liquidação de pequenas diferenças, como se fossemos regidos por uma Câmara de Compensações invisível. Coisas de quem viveu em kibutz.  

Ademais de todas essas vantagens, tendo a ver no dinheiro uma bactéria que se apossa de alguns de forma tão implacável que, quando encontra o organismo hospedeiro ideal para aconchegá-la, transtorna o cidadão de forma tal que, pouco a pouco, a sociedade mesmo se encarrega de lhe jogar num limbo onde padece de danações que lhe parecerão inexplicáveis, mas que, a seu turno, já resultam da enfermidade. É mais ou menos assim: tem gente que faz reivindicações salariais que são totalmente incompatíveis com o estilo de vida que estampam. Outras tantas, jamais souberam na vida o que é ajudar o próximo e nunca conseguiram ler nos olhos alheios o desespero, salvo o bastante para se regozijar da desdita. A minha pergunta é se a economia compartilhada e casos como o Blá-blá apontam como uma solução para essas deformações de caráter ou se, pelo contrário, podem tornar o mal crônico? Saberia um beócio ser gentil e caloroso ou derraparíamos rumo ao primeiro caso da carona acima em que ele tentaria vender alguma coisa além do serviço? Acho que sim, pois é uma segunda natureza. Apesar de tudo, acho que o mundo se encaminha para melhor.    

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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