Sobre ser gordo

Tenho uma amiga que diz que o sobrepeso tem a ver com a afetividade mal resolvida. Como negar que isso faz todo sentido? Quem não ama, e não se sente amado, pode mesmo tentar equilibrar as coisas à mesa, devorando demorados churrascos e tomando cerve...
Sobre ser gordo

Tenho uma amiga que diz que o sobrepeso tem a ver com a afetividade mal resolvida. Como negar que isso faz todo sentido? Quem não ama, e não se sente amado, pode mesmo tentar equilibrar as coisas à mesa, devorando demorados churrascos e tomando cerveja em tal profusão que mais parece que o mundo vai acabar no dia seguinte. Sim, é bem possível. Até pensei: será que é o meu caso? Não que eu seja excessivamente gordo, o que se explica mais abaixo. Mas com quase 1.90 metro, qualquer dez quilos que perca já me bastam para usar as roupas de três anos atrás, e então tudo melhora num passe de mágica. Mas o ponto de partida aqui não é a silhueta, e sim a hipótese formulada por Sílvia.   

Pensando bem, não saberia dizer se me enquadro à perfeição com o sujeito carente de afeto. É claro que sempre cabe mais – a gula de um gordo se espraia por outros domínios além da mesa –, e pouco importa se a vida foi pródiga nesse terreno, tendo proporcionado a chance de conhecer mulheres muito especiais que sempre deram mais do que eu merecia. Seja como for, é importante conhecer alguns traços psicológicos que, pelo menos no meu caso, valeram vigorosos puxões de orelha do médico em episódios ortopédicos recentes. Dos tais fatores, isoladamente, nenhum é determinante. A combinação deles é que é explosiva. Sem qualquer base científica, vamos enumerar os mais gritantes. 

a) Sua excelência, o sedentarismo – Tiro por mim. Há quatro anos, estava em forma bastante aceitável. Isso porque fazia boa parte de meus trajetos a pé. Tudo que estivesse compreendido entre Pinheiros e o Itaim, ao longo da Faria Lima, era parte do circuito pedestre paulistano. De mais a mais, chegava a descer a pé da Avenida Paulista até o Shopping Iguatemi, ao lado de minha casa. Quando tive de me mudar para a parte alta dos Jardins, contudo, para um dos trechos mais íngremes, comecei a me deslocar de carro. Saí, portanto, dos espaços horizontais e estaquei diante da topografia acidentada. A preguiça paulistana se espraiou por outros destinos frequentes, inclusive os de praia. Foi uma pena. 

b) Ansiedade antecipatória – A expressão não é minha, mas de um médico. Ouvindo meus planos sobre a profusa produção literária, ele me perguntou a razão de tanta aplicação. Ora, disse eu, em 2018 completo 60 anos. Já é uma idade respeitável. Não quero morrer sem deixar um legado sobre o que vi e aprendi. Outras gerações virão e talvez minha experiência possa ajudar as pessoas da mesma forma que, quando jovem, eu teria gostado muito de ter encontrado conhecimento estruturado e já pronto sobre meus domínios de competência. Daí essa ansiedade que me leva a acordar de madrugada para escrever. Escrever só depende de mim. Sobra menos espaço para cuidar do corpo, o que é outro erro.

c) Comida – Como não falar dela? Certo é que desde sempre associo a próxima escala à gastronomia. O paladar é uma coisa que se desenvolve muito cedo. E na casa de meus pais, sempre foi ponto de honra. Ainda criança, conectava toda viagem a um determinado prato. Isso me acompanhou vida afora a ponto de eu ter dificuldades de estabelecer empatia pessoal com quem come só para matar a fome. A centralidade da comida, contudo, faz com que as horas passadas em feiras, mercados e restaurantes tenham alimentado alguma gula. Não é tanto que coma errado – não sou de doces ou fritura –, senão que termine comendo muito. Dito de outra forma, é importante dividir os prazeres com mais senso de harmonia. 

d) Viver só – Homens que vivem com esposa e filhos, ou que estão encastelados em núcleos familiares onde todos metem o bedelho na vida alheia, são instados a se cuidar de forma mais vigilante. Existe uma certa pressão do bem, uma conspiração coletiva para que não coma aquele último pedaço de pizza nem abra um vinho tinto a mais, o que equivale a dizer que logo esvaziará a garrafa. Já homens que passam sós a maior parte do tempo são rebeldes ao que consideram intromissões, o que intimida os que eventualmente ventilam o tema da moderação. Com medo de passar por chatos, silenciam. E a fatura da balança só faz subir. É nessas horas que ganham a reputação de pessoas difíceis e inabordáveis. 

e) Dissonância cognitiva – Nem sei se a expressão é mesmo essa, mas ela me agrada. Funciona assim: da mesma forma que as anoréxicas acham sempre que estão dois quilos a mais do que o devido, mesmo quando lhes vemos todos os ossos do corpo, alguns gordos se acham belos. Conseguem ver a obesidade nos outros, mas são indulgentes consigo mesmos. Fazem a barba com um sorriso de satisfação para a imagem refletida no espelho, se borrifam com after shave como se dessem tapinhas de carinho num bumbum de bebê e cumprimentam as pessoas no elevador com alegria e galanteios. Quando crianças riem ou choram em reação à sua presença, gargalham magnânimos mesmo porque gordos são generosos. 

f) Fuga para frente – Configurado um quadro crônico de sobrepeso, instaura-se um processo interno de barganha. Eivado de auto-engano e desejo protelatório, o gordo registrará em algum lugar que um atleta morreu de ataque cardíaco e lerá um charlatão que defenderá a tese de que a população obesa em determinada ilha está menos propensa a derrames cerebrais do que os esbeltos. Tudo será pretexto para deixar o momento da verdade para depois, para mais adiante. Sublimando as angústias que decorrem da censura coletiva a quem ocupa o lugar de dois nas filas, o gordo vai se entocar num mundo de livros, acepipes e pequenos prazeres. À noite, na solidão do quarto, tomará um remédio para que a perspectiva da morte não o amedronte. 

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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