Amor, estranho amor

A tecnologia evolui a passos inimagináveis. Mas como seria de se esperar, a mente humana não lhe consegue alcançar o ritmo embora aquela derive desta. Pois sem o homem, não teríamos registrado tanto progresso. No entanto, há paradoxos intrigantes de ...
Amor, estranho amor

A tecnologia evolui a passos inimagináveis. Mas como seria de se esperar, a mente humana não lhe consegue alcançar o ritmo embora aquela derive desta. Pois sem o homem, não teríamos registrado tanto progresso. No entanto, há paradoxos intrigantes de permeio. Hoje mesmo conversava com um amigo sobre as etapas que venci para superar a tecnofobia. Graças ao estímulo de minha editora, inaugurei um perfil no Facebook em 2016. Em 2017, estava no Instagram, experiência que continuo achando morna. Finalmente este ano, aderi ao WhatsApp, onde acompanho cinco grupos e tenho 36 amigos cadastrados. Ora, isso para mim já é uma enormidade, levando em conta minha proverbial tecnofobia.   

Das três redes, disse meu amigo no animado almoço que temos todo dezembro, a mais útil e funcional para ele é a última, plataforma de onde gerencia a vida. "Sem o WhatsApp, minha rotina estaria desestruturada, não saberia o que fazer ao sair da cama". Arqueando as sobrancelhas, disse, contudo, que o aplicativo vem sendo o terror de muitos de seus conhecidos. "As esposas sabem que a vida de verdade acontece no WhatsApp. Ele tem o peso que tinha antigamente o "in-box" do Facebook, sendo que ali é mais fácil de apagar as pegadas. Para algumas das mulheres – e certamente para alguns maridos também –, não dar a senha do WhatsApp ao cônjuge é confirmar que há algo a esconder, que a vida tem lado B". Fiquei atônito.

Se o fim da privacidade já virou de há muito o mais consagrado dos truísmos, como se pode de sã consciência levá-lo a extremos tais? Mas ele reforçou o argumento com exemplos. "A maioria de meus amigos tem quase a obrigação de dar a senha à esposa. E quando este não é o caso, elas têm o direito de fazer uma blitz e de auditar as conversas que elas acham mais suspeitas". Rindo, complementou: "Se Sergio Moro mandava o pessoal dele ir atrás do dinheiro, no caso delas o foco são as amigas, as ex-namoradas, enfim, outras mulheres. O mais desagradável é que sempre tem amigos que mandam mensagens mais picantes, mais irreverentes, nem sempre politicamente corretas. Então a gente tem de arcar pela iniciativa alheia. É uma censura cruzada". 

Olhei o relógio. Dia 18 de dezembro de 2018. Há um século, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, dadas as baixas incontáveis de homens nos campos de batalha e nas trincheiras geladas, as mulheres ocuparam o lugar deles nas mais variadas atividades econômicas. Com todos os freios que ainda conhecem em sociedades conservadoras ou mesmo retrógradas, foram apreciáveis os ganhos da civilização em seu favor. Como explicar esse expediente primitivo, que se traduz em fuçar a correspondência alheia, devassando a intimidade que resta? Dá até para entender um expediente dessa natureza num rincão talibã onde a mulher quer saber se a outra ganhou uma joia e ela não. Ou em cidades varridas pelo Boko Haram, onde é a vida que está em jogo. Mas numa cidade grande do Brasil... 

"Cara, agora pergunto eu: que mal haveria em admitir que sim, que efetivamente você ou qualquer outro entretêm um lado da vida que não precisa ser necessariamente compartilhado com seu cônjuge? Acaso você coloca sob escuta as conversas dela com as amigas?" Sem saber muito como argumentar, ele rebateu: "É, bicho, mas é assim que as coisas andam funcionando por aqui. Caso contrário, ou seja, se resistir, é encrenca na certa. O pressuposto meio medieval, confesso, é que o lado da mulher é sempre puro e se há alguém que apronta, este é homem". Puxei outro assunto com a urgência de quem destrava o paraquedas de reserva. Um minuto mais daquela conversa, eu perderia o apreço que tenho por ele. 

Que o mundo está doente, não há grande dúvida. Por outro lado, não sou a medida das coisas e minha vida pode não espelhar o padrão convencional de certo tipo de união. A bem da mais pura verdade, meu telefone sequer tem senha para eu não ter de acumular mais uma das tantas a que já sou obrigado a ter. Uma coisa é certa: se eu, por acaso, flagrasse alguém de minha relação tentando decifrar minhas poucas conversas com as pessoas numa rede menos pública, como é o caso do WhatsApp, eu fecharia as portas para a continuação do convívio na hora, disso tenho certeza. Mas para cada cabeça, uma sentença. Foi mais uma lição de folclore dos costumes que me ficou de 2018. Para cada dois passos para frente, sempre haverá de ter um para trás. 

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Sexta, 13 Dezembro 2024

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