O tsunami financeiro global avança sobre a América Latina
Já faz quase nove anos que estourou nos EUA uma crise financeira em decorrência do colapso do mercado de hipotecas de risco elevado ou subprime. Apesar disso, muitos economistas acreditam que as consequências daquela grande crise continuam a afetar atualmente a economia mundial, o que deverá perdurar nos próximos meses. De fato, existe uma teoria segundo a qual o mundo vive hoje uma grande tormenta econômica que vem se desdobrando em três fases: a primeira delas corresponde à crise financeira já mencionada dos EUA; a segunda ocorreu na Europa, com graves problemas para a dívida soberana de países como Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal. A terceira onda está em gestação atualmente e avançará com força sobre os países emergentes, entre eles os da América Latina.
“Seis anos depois que a economia mundial saiu da recessão mais ampla e profunda desde o pós-guerra, o retorno a um crescimento robusto e sincronizado continua incerto”, informou o Fundo Monetário Internacional (FMI) em seu último relatório Perspectivas da Economia Mundial, publicado em outubro do ano passado. O órgão não hesita em destacar que atualmente o principal foco de vulnerabilidade do mundo encontra-se nos países emergentes, na desaceleração da economia chinesa e na pressão cambial. Some-se a isso a provável e iminente mudança na política monetária norte-americana.
Uma nova forma de explicar a realidade
“Um coro crescente de vozes batizou de ‘terceira onda’ (ou ‘trilogia’) a hipótese de que o fim de ciclo nas economias emergentes não é mais um apenas em sua história acidentada. Trata-se, antes, da terceira encarnação da crise financeira internacional que vem nos espreitando desde 2007”, explica Javier Carrillo, professor de economia da Universidade de Alcalá, de Madri, em um blog da Escola de Negócios IE. A teoria de uma crise em três ondas ou fases foi também defendida por organismos oficiais. O economista-chefe do Banco da Inglaterra, Andrew Haldane, observou em discurso feito em 18 de setembro na Irlanda do Norte que a sucessão de eventos que se observa nos países emergentes é a terceira etapa de uma crise global constituída de três fases.
Haldane disse que essas três fases partilham de uma origem comum: o excesso de liquidez global que se instalou nos mercados financeiros, inflando e desinflando as economias. Apesar disso, defendeu que o terceiro estágio ainda está em situação embrionária.
Nicolas Cachanosky, professor da Universidade Estadual Metropolitan, de Denver, concorda que essa é uma forma de descrever os efeitos da crise que começou em 2008. “A crise do subprime não foi uma crise nacional, e sim uma crise com características internacionais. Não me refiro à bolha imobiliária, e sim às políticas monetárias que levaram a esse desfecho”, disse. De forma resumida, explica, “depois de 2001 (crise do mercado de tecnologia e atentados de 11 de setembro), o Federal Reserve decidiu iniciar uma política expansionista que foi acompanhada por outros bancos centrais. O desequilíbrio financeiro, portanto, é um fenômeno internacional. Nos EUA, ele se manifestou principalmente no mercado imobiliário. Na Europa, o choque financeiro afetou com maior evidência a dívida pública de países como Itália, Espanha e Grécia”. Cachanosky observa que os mercados emergentes foram golpeados por dois problemas. Em primeiro lugar, pela desaceleração da economia, na medida em que isso afeta negativamente o preço das commodities, afeta também os países emergentes produtores de matérias-primas. Em segundo lugar, a elevação das taxas de juros pelo Fed e por outros bancos influi igualmente de forma negativa nos fluxos de capitais dos países emergentes. “Os bancos centrais seguem as determinações estipuladas com base na situação econômica doméstica, porém a política monetária dos principais bancos centrais do mundo tem efeitos internacionais. Por exemplo: as duas maiores crises latino-americanas dos últimos 60 anos ocorreram depois dos dois períodos de maior distanciamento do Fed em relação à Regra de Taylor”, diz Cachanosky. A Regra de Taylor é uma norma de política monetária que determina quanto deve variar a taxa de juros fixada pelas autoridades em função das mudanças ocorridas na taxa de inflação e na produção de uma economia.
Luis García Echeverría, professor de economia internacional da Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá, na Colômbia, não crê na teoria de uma crise em três fases, “e sim em problemas resultantes do ordenamento econômico nacional e, portanto, do ordenamento econômico mundial”. Ele se refere, de modo especial, a políticas econômicas de gastos não sustentáveis e a regulações financeiras nacionais frágeis (sejam elas decorrentes de leis ou de órgãos de supervisão). Para García Echeverría, esses aspectos “muito possivelmente continuarão a gerar crises no futuro, mas não ao estilo de uma trilogia, e sim em decorrência de problemas analiticamente simples de identificar, mas politicamente difíceis de resolver”.
Peter Oppenheimer, estrategista-chefe de renda variável global do Goldman Sachs, também defendeu essa teoria em um artigo publicado pelo Financial Times em 11 de novembro. No artigo, Oppenheimer assinalava que as fragilidades apresentadas pelos países emergentes e pela China são consequência da retomada do equilíbrio do seu crescimento econômico depois de uma forte entrada de liquidez oriunda das economias desenvolvidas, muito mais do que um problema de deterioração estrutural. Todavia, Cachanosky crê que ambos os fatores tenham atuado conjuntamente. “Não acredito que uma coisa exclua a outra. Em vários países emergentes, pode haver problemas estruturais no sentido de que políticas monetárias e fiscais incentivaram investimentos que resultaram improdutivos. Por outro lado, mudanças no contexto internacional podem levar a uma mudança nos fluxos de capitais e/ou prazos de investimentos produzindo efeitos que, à primeira vista, são similares. Esses dois efeitos, porém, podem também ocorrer ao mesmo tempo.” Cachanosky observa que assim como uma política monetária doméstica pode levar ao uso ineficiente de recursos, o mesmo pode acontecer em economias emergentes quando os principais bancos centrais do mundo aumentam a liquidez nos mercados internacionais a que têm acesso àquelas economias. “Tenho a impressão de que é este último caso que resume as dificuldades das economias emergentes. É bom lembrar que os bancos centrais das principais economias introduziram fortes políticas expansionistas depois da crise de 2008. O Fed, o Banco Central Europeu e o Banco da Inglaterra são apenas três dos bancos que aportaram liquidez ao sistema financeiro”, diz.
Consequências e reações
García Echeverría explica que na atual conjuntura as finanças públicas dos países emergentes em geral, e latino-americanos em particular, serão afetadas. Com isso, surgirão entre os governos ideias de reformas tributárias com aumentos de impostos e/ou redução de gastos para manter o gasto público nos níveis conjunturais alcançados durante os últimos dez anos, mas que são insustentáveis a longo prazo. Para García Echeverría, os investimentos também sofrerão interrupção, já que dependem essencialmente de bens de capitais importados, mais caros devido à sua desvalorização inevitável e a expectativas mais moderadas. Qual a solução? Para García Echeverría, os mercados emergentes só têm uma alternativa: adaptar-se a um nível de gasto agregado menor. “Não há muitas opções, já que a diminuição das receitas com base em temos de troca não é algo que se possa substituir. Inevitavelmente, a solução é cortar gastos”, diz. Ele propõe, do ponto de vista fiscal, que se diminua o gasto sem aumentar impostos até um nível sustentável a longo prazo. Ao mesmo tempo, García Echeverría crê que a política monetária deve manter a ortodoxia para atingir as metas de inflação (sem interferir no mercado cambial), aplicando-se corretivos para acomodar o crédito a níveis compatíveis com os recursos disponíveis, internos e externos. “O efeito da aplicação dessas medidas é o que se deve aceitar até o próximo boom econômico. O importante é agir com base na perspectiva de longo prazo, e não com a miopia de um resultado de curto prazo, talvez por razões pré-eleitorais ou por interesses frequentes dos políticos à custa da estabilidade futura”, diz.
Para Cachanosky, a América Latina deve resolver vários problemas fundamentais. Em primeiro lugar, a deterioração institucional de várias de suas principais economias, como a da Argentina, Brasil e Venezuela. “A longo prazo, o nível de desenvolvimento das nações depende de um marco institucional adequado”, diz. Os outros grandes problemas a serem resolvidos são: desequilíbrios fiscais e pouca liberdade econômica, coisas que tolhem a competitividade. “Um tesouro equilibrado significa que o governo não precisa recorrer aos mercados financeiros para financiar o déficit, evitando problemas de monetização do déficit (inflação) ou de prêmio nas taxas de juros por risco de calote (dívida pública crescente). Um país pode ter uma economia aberta e inter-relacionada com o mundo, mas essa economia será dependente da situação financeira internacional, na medida em que insistir em ter um tesouro com déficit estrutural”, observa Cachanosky.
Ao serem questionados se a América Latina pode sair reforçada dessa terceira onda da crise financeira global, os especialistas não têm uma resposta clara. Garantem que muita coisa dependerá da situação concreta de cada país e das políticas econômicas por eles implementadas. “Os que mantiverem os níveis de gastos mediante endividamento externo, podem, sem exceção, estar preparando sua próxima crise e, quem sabe, também a dos sistemas financeiros mal regulados que lhes concederão empréstimos”, adverte García Echeverría.
Para Cachanosky, é difícil predizer quais países podem sair mais fortes das dificuldades atuais. “Tenho a impressão que, além das dificuldades que os mercados internacionais podem impor às economias latino-americanas, os problemas são principalmente domésticos”, disse. Ele observa que o Chile, por exemplo, se encontra em uma situação melhor do que a dos demais países mais fechados e com regimes de corte mais populista. “O panorama econômico dependerá mais das questões políticas de cada país e de reformas institucionais do que do contexto internacional”, disse. A Argentina e a Venezuela são dois exemplos disso. “As duas economias desfrutaram dos altos preços das commodities que exportam. Os dois países se acham em sérias dificuldades econômicas, sociais e institucionais. A elevação dos preços das matérias-primas não significa que as economias latino-americanas estarão em melhor situação. É preciso não confundir uma “festa de consumo” com crescimento econômico genuíno. Prever o futuro institucional e político é muito difícil, uma vez que depende da decisão de indivíduos em postos chaves”, concluiu.
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