A chinesa do metrô

O nós contra eles fragmenta a solidariedade e espezinha a empatia

É inverno em Paris, mas podia ser primavera. Nas últimas noites que antecederam a passagem da tempestade Ciara, as cadeiras dos cafés da Place de la Contrescarpe estavam tão tomadas como se fosse maio. Com a atualização dos números de vítimas, as atenções se voltam para o coronavírus e os alarmantes índices de letalidade. Nesse contexto, os asiáticos em visita à França pareciam registrar os primeiros indícios de rejeição nos bons endereços locais. Falou-se de uma família que voltou da porta do Flore, sob alegação frágil de que o café estava cheio. E uma chinesa declarou à televisão que a filha se recusava a ir à escola porque lá os colegas lhe tinham dado o pior dos apelidos: Corona – em flagrante bullying. A conta sobrou para os hábitos alimentares chineses, e a mais rica culinária do mundo foi para a berlinda, agora vista como um cavalo de troia de microrganismos traiçoeiros, ameaçadores da espécie.

No sábado, peguei o metrô para ir à gare de Bercy, onde tomaria o trem para Clermont-Ferrand. Na estação Place d´Italie, entrei com vários passageiros no único vagão que nos parecia mais vazio. A explicação estava à entrada. Segurando o encosto da cadeira, pontificava uma chinesa diante de quem todos pareciam prender a respiração e desviar caminho. Dois ou três recuaram da porta abertamente, sem tentar esconder o pavor. Paramentada de emissária da morte, ela era pálida, tinha cabelos mal tratados e oleosos, um decote que desnudava um colo azulado e enfermiço, bochechas castigadas por erupções cutâneas recentes, e um olhar de peixe morto. Por sobre os ombros, a capa preta. No íntimo, pensei que fizesse uma performance para um programa de câmera escondida. Se espirrasse ali, alguém acionaria a parada de emergência e todos sairiam voando sobre os trilhos. O nós contra eles fragmenta a solidariedade e espezinha a empatia.

Nesse contexto, esperemos que a engenharia social chinesa, essa mesma que lhes permite construir um hospital gigante em poucos dias, consiga debelar o que seu Premiê chamou de o demônio. É nessas horas que vemos que a globalização dos padrões de consumo é também forte indutora de propagação do medo. Pouco importa que tenhamos entre nós um repertório virótico mais letal. Na hora de apontarmos o mal, como acontece a qualquer família, o perigo real é o que vem de fora, nunca o doméstico, a que terminamos nos acostumando. Até o momento, a marca identitária da crise que abala o mundo é para mim a voz da mãe que bradava: Elle ne s´appelle pas Corona. Seja como for, é de momentos assim que tiramos as melhores conclusões com respeito aos caminhos da História e à volatilidade das reputações. Um herói já temos, o Dr. Li, que denunciou a eclosão do vírus, mesmo sem a benção oficial do governo chinês. Quanto aos vilões, os candidatos podem ser muitos, inclusive Pequim e seu alto comando.

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Sexta, 13 Dezembro 2024

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