O trabalho que dá ser italiano

Se já tive alguma vez a veleidade de viver segundo a cartilha dos italianos, sinceramente não lembro. Se aconteceu, talvez tenha sido à mesa, local em que reconheço haver miríade de delícias que, ao longo dos anos, terminaram por me arredondar a cint...
O trabalho que dá ser italiano

Se já tive alguma vez a veleidade de viver segundo a cartilha dos italianos, sinceramente não lembro. Se aconteceu, talvez tenha sido à mesa, local em que reconheço haver miríade de delícias que, ao longo dos anos, terminaram por me arredondar a cintura. Ademais da gastronomia, admito, posso ter sido fiel ao vestuário elegante, especialmente quando só me desvencilhava do terno e gravata nos fins de semana. Mas o que era regra ontem, virou exceção hoje. Para efeitos dessas reflexões, contudo, certo é que deve ser uma provação excruciante viver segundo o receituário de um italiano médio como esses que a gente vê na rua e que espelham o padrão nacional. Concluo isso da mera observação do bulício dos burgos nesses dias que antecedem o Natal. Sendo esta uma deformação de ofício inelutável, quase sempre deixo museus, ruínas e vulcões para depois, para desespero de quem me acompanha. E quantas vezes já não ouvi: "Mas o que você tanto vê num velho que toma café e fuma um cigarro? O que tem de excepcional nisso?" Geralmente, prefiro silenciar.     

Certo é que desde o norte, lá no Tirol do Sul, fronteira com a Áustria, até a ilhota de Lampedusa, ao lado da Sicília, ser italiano dá um trabalho tremendo. Imagino o tempo que essa nação de jovens metrossexuais gasta no barbeiro a pedir, caprichosamente, que este lhes acerte com a precisão de um topógrafo a textura dos cabelos, segundo onde cresçam. Querem-nos quase invisíveis na cocuruto; fartos no topete; delineados nas têmporas; com nervuras nas laterais e progressivamente ralos na nuca, até o limite da primeira tatuagem. E as barbas? Vê-se de tudo. Desde algumas imensas, desgrenhadas como as de andarilhos, até composições que ficam a meio caminho entre o que poderia ser um cavanhaque e uma barba de verdade. As combinações capilares numa só cabeça resultariam em milhares nessa luta pela individualização. É o caso de nos perguntarmos se esse fetiche atende a um imperativo profissional ou a um rito qualquer de pertencimento. Afinal, sobra tempo para mais alguma coisa além de se produzir? 

Se penteados e tatuagens sinalizam filiação a um grupo ou, a seu modo, constituem um ritual de guerra, certamente que os jeans estudadamente rasgados em partes escolhidas cumprem a mesma função. Importante atualmente – desde o ano passado, na verdade – é que quase todos tenham dois dedos da barra virada, pouco importa a idade do personagem. Como alternativa ao jeans, prevalece uma moda horrível que consiste numas calças apertadíssimas no tornozelo e frouxas a mais não poder na região das nádegas e que, quase sempre, estão um dedo abaixo da faixa da cueca aparente. Assim sendo, ególatras de todas as extrações sociais disputam espaço diante do espelho para conferirem o apuro da indumentária. Mas ora, se esses pequenos cacoetes ficassem cingidos a uma juventude ébria do sonho de ser futebolista, chefe de gangue ou manequim, a sociologia urbana o esclareceria. No entanto, o que dizer de adultos que usem óculos de sol no meio da testa? Ou que deixa-os repousados na nuca ou até no pomo-de-Adão, mesmo sob um sol inclemente? Parece prato cheio para a psiquiatria. 

Cabelo, barba, jeans e óculos ainda não dizem tudo. Isso porque tampouco vejo explicação para que homens maduros enverguem um capuz sobre a cabeça, mesmo em ambientes fechados e quentes, como podem ser as cabines de trem. Na mesma linha, já dura alguns anos uma moda boba de deixar o colarinho da camisa para cima, como se a nuca precisasse de uma proteção extra. Dias desses, me chamou a atenção a febre por bolsas a tiracolo da Panam dos anos 1960, ou de quaisquer marcas americanas do século passado. Importante é que tenham um ar "vintage" e, na imensa maioria dos casos, certamente que seus donos as levam vazias, só para fazer tipo. Já nem falo do estar à vontade italiano para combinar cores inusitadas como alaranjado, violeta, vermelho e abóbora. Até admito que a palheta dessa cromatografia ébria decorra em grande parte da pobreza. Pega-se um chale da avó, uma calça do avô falecido e uma camisa em promoção, e daí se cria uma identidade visual. Mais adiante, vira "trendy" e sai a primeira linha comercial de "prêt-à-porter". Depois, viraliza. Afinal, começou na Itália. 

Integra a caracterização desse italiano a que aludimos a aposição de mais duas marcas rituais que estão presentes em suas vidas cotidianamente. Nesse contexto, é divertido ver como tomam café. Além de pedi-lo sempre numa linguagem cheia de diminutivos que o barista o tire com alguma característica que os remeta aos dengos maternos – "com uma nuvem de espuminha, por cortesia" ou "com três gotinhas de leite desnatado" –, é curioso como dissolvem o açúcar. Revolvem a colher em movimentos circulares ritmados até o primeiro gole. Como é um país onde fumar ainda é atributo de charme, é curioso como os homens seguram seus cigarros. O filtro fica encaixado na junção do indicador e o médio, tocando na palma da mão. E não na ponta das falanges desses mesmos dedos, como geralmente acontece. Muitos passam longos minutos batendo a ponta do cigarro na caixa antes de levarem-no à boca. Por fim, o gestual da conversação é um ato à parte e merecerá um dia seu capítulo. Mas, como seria de se esperar desse emaranhado de códigos e cuidados, fala-se muito e ouve-se pouco. Daí tanto grito. 

Seja como for, é sem dúvida alguma "il bel paese". Vale conferir.        

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Quinta, 25 Abril 2024

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