Banho de sangue em Istambul
Decolei de Tbilissi, Georgia, às 11 horas da noite da segunda-feira (27). Cruzamos o Mar Negro em toda a extensão meridional e pousamos no aeroporto Atatürk (foto) às 2 da manhã da terça-feira (28), dia do atentado ensandecido. Apesar do horário, as instalações me pareceram estranhamente calmas. Nada que lembrasse as três últimas vezes em que transitei por lá neste ano, o que atribui desta feita ao Ramadã. Normalmente, gosto de caminhar pelo saguão, comprar temperos e chás. E ainda esticar as pernas para ativar a circulação. Mas um estranho sexto sentido me segredou dessa vez que não era prudente. Ou, talvez, estivesse só mesmo precisando me recolher para trabalhar um pouco já que o dia raiava no Brasil e teria um longo voo pela frente. A essa altura, já não sei o que é realidade ou reelaboração de fatos sucedidos, o que é comum nessas circunstâncias.
Situado numa encruzilhada civilizacional, no Atatürk vemos judeus ortodoxos; muçulmanos xiitas; monges budistas; prelados da igreja georgiana; nigerianas em trajes aparatosos; ucranianos embaçados de vodca e mortais como eu e você. Desta vez, porém, reinava um silêncio espesso e me entoquei no "lounge" da Turkish Airlines. Trabalhei e, 8 horas mais tarde, rumei para o portão onde me aguardava o voo para São Paulo. Para escapar de aglomerações, fiz em 10 minutos o trajeto que normalmente levaria 15. De tão cansado, depois de uma noite em claro, mal lembro a decolagem. Quando voltei a abrir os olhos, já cruzávamos a linha do Equador e os mapas luminosos a bordo assinalavam no canto esquerdo da tela a cidade de Fortaleza. Tomei água e voltei a dormir até quase o Rio de Janeiro. Não tardaria a saber do ocorrido.
Não por acaso, é bom que se diga, a Turquia fizera na véspera discretos movimentos para normalizar as relações com Israel e com a própria Rússia, aliado bobamente perdido por conta da derrubada de um caça de Moscou por um soldado irresponsável, envolvido com facções que torcem pelo pior. A privilegiada localização geopolítica do país – espectador engajado do Cáucaso; guardião do Oriente-Médio; vizinho dos Bálcãs e posto avançado da OTAN no Mediterrâneo Oriental – impõe à Turquia um preço alto, ademais de ter de lidar com a Síria e o Iraque conflagrados. Homem sem temperança, Erdogan consegue brigar com a própria sombra. Assim sendo, apesar dos "Boinas Marrons", corpo de elite de alta qualificação, é enorme a tentação do terrorismo de deflagrar barbaridades no terceiro aeroporto da Europa.
Nesse contexto, admito que vinha observando há bom tempo que a segurança estava frouxa para acolher os mais de 60 milhões de passageiros que lá transitam. Mas, é claro, não é sempre que se pode evitar a insanidade alheia. De qualquer sorte, a nenhum país é dado negligenciar o fator surpresa do terror. No caso do Brasil, convém atentar para os Jogos Olímpicos. À beira do caos, a acefalia reinante no Rio de Janeiro pode levar o poder constituído a selar laços com a delinquência organizada para administrar o evento. A reedição dessa prática brizolista que tanto mal fez à Cidade Maravilhosa – tão deslumbrante quanto a congênere do Bósforo – é a senha para que a escalada aumente. Pois por trás de toda ação do terror, quase sempre houve um momento de complacência em que ele pareceu um mal menor. Num abrir de olhos, se vê que ficou tarde para refreá-lo.
Pergunta-se, portanto: o que fazer numa hora dessas? Contra o terrorismo, só inteligência e ação diligente em cima das fontes de financiamento. Por ironia suprema, nesta segunda-feira, 4 de julho, no momento mesmo em que escrevo este post, funcionários públicos reunidos do lado externo do Galeão ostentam faixas em protesto onde se lê: "Welcome to hell" ["Bem-vindo ao inferno"]. Mas ora, não há mal que não possa piorar. Acaso não vimos o que aconteceu em Bagdá no fim de semana? Nesse contexto, menos de uma semana depois de ter driblado um encontro com o destino que poderia ter sido fatal, vale enfatizar que a vivência nos dota de uma intuição apurada tanto para coisas boas quanto ruins. Tivesse eu que entrar na pele de um terrorista tresloucado, o aeroporto de Istambul tinha tudo para configurar bom alvo. Espero que ninguém diga o mesmo dos nossos.
Nesse contexto, quando o avião decolou para São Paulo, senti grande alívio. Igual ao desalento que me acometeu quando li dezenas de mensagens no celular ao desembarcar no destino, 13 horas mais tarde. Que não seja isso uma chaga duradoura na vida fascinante da amada Constantinopla.
Veja mais notícias sobre Tributos.
Comentários: