Será preciso rodar em outro software
Venho falando amplamente em meus artigos e palestras sobre as mudanças imperativas da transformação digital. Porém, como inúmeras empresas não estão preparadas para traçar novas estratégias, o desafio é ainda maior quando pensamos nas instituições públicas. Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU) revelou o baixo percentual de instituições que estão capacitados para entregar o que os cidadãos esperam. De acordo com estudo realizado pelo órgão sobre governança na administração pública federal, relatado pelo ministro Bruno Dantas, a maior parte das entidades federais “não possui capacidade minimamente razoável” de entregar o que se espera deles para os brasileiros.
O índice integrado de governança e gestão (iGG) é composto por indicadores como governança pública, gestão de pessoas, gestão de TI e gestão de contratações. O levantamento mostrou que mais da metade (58%) das 488 organizações se encontram em estágio inicial no iGG; 39% em nível intermediário e somente 3% em estágio aprimorado. Os cidadãos vêm criando expectativas por serviços públicos digitais para facilitarem suas vidas, assim como elas foram simplificadas pelos aplicativos de transporte, por exemplo, ou pelas compras on-line. Deixar de atender a essa expectativa vem se tornando sinônimo de serviços deficientes.
O fato é que de forma genérica, hoje as organizações públicas e privadas se deparam com dois tipos de usuário. Aquele tradicional, acostumado com uma estrutura muito mais burocrática e com sequências de etapas muitas vezes desconectadas, é um deles. Ele não reclamará se tiver, por exemplo, de passar um longo tempo em uma fila. Porém, o cidadão digital é mais prático. Ele, que provavelmente representa eu ou você que está lendo este artigo, não quer que o governo, ou quaisquer outros serviços se distanciem das experiências digitais que já são naturais em suas rotinas. O consumidor digital quer celeridade, respostas rápidas para suas questões e um atendimento que funcione.
Cidadãos são, na verdade, clientes de instituições públicas. Talvez o termo "cliente" pareça não ser o mais adequado, mas aplica-se e são úteis os mesmo princípios e táticas utilizadas por organizações privadas que priorizam a experiência do consumidor como estratégia, pois a sociedade digital demanda cada vez mais serviços rápidos e eficazes. Diante desse cenário, é importante uma cultura de maior proximidade com o cidadão ou o gap em relação à expectativa será cada vez maior.
Quando penso em uma cultura voltada para o cidadão, lembro satisfeito da recente experiência na renovação do meu passaporte. Ao entrar em contato com a Polícia Federal, soube que o posto de atendimento no qual eu deveria ir para renovar o documento estava localizado no Shopping Praia de Belas, em Porto Alegre. A mudança de endereço por si só já me gerou satisfação, afinal, logo pensei na facilidade para estacionar. Ao chegar ao posto da PF, conferiram meus documentos e a funcionária me deu um dispositivo móvel, semelhante ao que recebemos em restaurantes para aguardar mesa. Disse que eu poderia passear no shopping, pois quando fosse minha vez de ser atendido, aquele dispositivo vibraria para avisar que estava na hora do meu atendimento. Ora, não precisei entrar em fila, fui bem atendido e, principalmente, em segurança. Muito bom, né? Melhor que isso só seria se eu não tivesse que ter organizado uma série de documentos antes, acessando diferentes órgãos para consolidar tudo!
Aproveitando esse caso, gostaria de falar do projeto de Identidade Civil Nacional (ICN). A ICN será um documento único do cidadão brasileiro e utilizará a base de dados biométricos da Justiça Eleitoral, com o objetivo de unificar os cerca de 20 documentos de identificação usados no Brasil. A Justiça Eleitoral está organizando uma base de dados com informações de identificação de todos os cidadãos, para uso de todos os órgãos governamentais, além de ser uma excelente fonte também para iniciativa privada. Um modelo de identidade digital consolidado é o da Estônia, case mundial de governo digital, cujo cartão de identidade é considerado um dos mais sofisticados que oferece autenticação forte pessoalmente ou à distância.
A Deloitte, em um completo estudo sobre entrega de serviços digitais por parte dos governos (clique aqui para ler, em inglês), aponta três pilares da transformação digital com foco no cidadão. O primeiro é desenvolver uma experiência digital de ponta a ponta, onde a totalidade de uma experiência não acaba na prestação dos serviços. Assim os governos devem focar em manter um fluxo contínuo de comunicação com os usuários. O segundo pilar é desenvolver uma identificação digital única e uniforme para o cidadão. Muitos governos possuem uma ampla rede de sistemas para identificar as informações dos cidadãos e raramente se conectam para usuário final, sendo assim, defende a criação de um padrão para gerenciar as informações. Já o terceiro pilar é a capacidade de compartilhar dados, o compartilhamento de informações entre agências, assim como os cidadãos, com um identificador único, poderia ficar on-line em diferentes portais sem necessidade de repetir informações de acesso.
Observo que hoje, de forma geral quando falamos em serviços públicos, nos deparamos com um hiato entre os serviços prestados e as experiências que o mercado oferece. Além de pensar no cidadão como cliente para que as interações sejam relevantes e completas, também temos de considerar que vivemos a ascensão das plataformas, que é uma das alternativas para que o serviço público de forma geral possa fornecer experiências contínuas como as fornecidas pelo Netflix, Amazon e Uber, por exemplo.
Para termos um serviço público realmente projetado para o cidadão, as instituições terão de entregar mais do que os acessos tradicionais. Elas terão de projetar ambientes digitais pensando no modelo de atuação baseado em plataformas, onde o cidadão único, sem múltiplos cadastros, possa ser conectado de forma simples aos serviços que procura. Lembre-se que pensar em transformação digital vai além das tecnologias, pois ela tem início por saber mapear quais são as experiências que precisam ser criadas.
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