Meio século de comércio entre Brasil e China
A questão central na relação Brasil-China, dita, repetida, estudada, denunciada e já banalizada é o desequilíbrio do comércio bilateral – "nós" vendendo meia dúzia de produtos primários, e "eles" vendendo produtos industriais e de alta tecnologia. Como agravante, o fato da China ser o maior comprador dos três produtos de maior valor exportado (soja, carnes e minério de ferro), segmentos cujo aumento recente da capacidade de produção se deve única e exclusivamente a esse imenso comprador.Além dessa questão decisiva, há mais três de grande importância, a começar pela também já recorrente, que é, ainda, a falta de estratégia do Estado brasileiro (leia-se "governo federal") com a China, e as muitas estratégias particulares dos vários setores e segmentos, cada um buscando o melhor para os negócios dos seus integrantes. Com o agravante nesse caso, dos setores (aí incluídos governos estaduais e de grandes cidades) que não têm estratégia alguma para se relacionarem com a China, quando o fazem é de maneira errática e em contínua solução de continuidade.
Exemplo gritante dessa falta de estratégia brasileira em relação à China é a neoindustrialização, cujo plano da Confederação Nacional da Indústria (CNI) foi anunciado em maio de 2023 e o do governo federal no mês seguinte, com o que há de mais moderno: inovação, descarbonização, inclusão social e desenvolvimento sustentável. Mais acesso a crédito de longo prazo e com custos menores do que os praticados pelo canibalismo financeiro dominante no Brasil. O documento da CNI tem 246 páginas, nas quais aborda an passant sobre as ferrovias, os portos e as hidrovias. Não citam transporte aéreo de cargas, dutos e indústria naval. Ou seja, não aprendemos grande coisa com a industrialização e a expansão das exportações da China, a partir dos anos 1980, viabilizadas com a extraordinária competitividade internacional do país, possibilitada não apenas pela escala de produção, mão de obra barata e financiamento público, mas também pelo baixo custo de transporte de carga, possível graças à construção de 100 mil quilômetros de ferrovias no período 1978/2023, dos quais 40 mil quilômetros de alta velocidade (construídos de 2007 em diante) – total maior do que o do restante do mundo.
Essa é a terceira grande questão na relação entre os dois países: só a China pode ajudar o Brasil a se livrar da dependência excessiva do transporte rodoviário. Países das dimensões da China, Brasil e Canadá (que possui 50 mil quilômetros de ferrovias) dependem de transporte de cargas barato para poder desenvolver sua economia. Se a China tem know-how de construção rápida de ferrovias de qualidade, e pode aportar parte dos recursos necessários para a construção de 20 mil quilômetros de ferrovias, por que até agora o Brasil não conseguiu isso? Trata-se de um investimento que demanda muito aço, para os trilhos, vagões e locomotivas, e o Brasil tem condições de produzir todo esse aço, pois não precisa importar. O impacto econômico das ferrovias, com a redução dos custos de transporte de mercadorias para exportação, possibilitará ao Brasil a competitividade perdida nos últimos 20 anos, tão responsável pela perda de mercados para produtos industriais brasileiros, quanto a atuação dos industriais que foram à China nesse período para comprar ou encomendar a fabricação lá do que produziam no Brasil e deixaram de fazer para tornarem-se comerciantes de produtos industriais chineses aos quais agregam suas marcas e rótulos. Não é à toa que hoje a distância da indústria da China em relação à do Brasil é chocante. O estudo "Desempenho da Indústria no Mundo", publicado pela CNI com dados da OCDE, em setembro de 2022, não deixa margem para dúvidas: na participação nas exportações mundiais da indústria da transformação, a China lidera, com 18,4%, e o Brasil está em 31º lugar, com 0,8%. Na participação no valor adicionado mundial da indústria da transformação dos 15 maiores produtores em 2021, a diferença é ainda mais escandalosa: a China aparece novamente em primeiro, com 30,4%, e o Brasil está na 15ª posição, com 1,2%.
Nesses 50 anos de relações diplomáticas Brasil-China, a serem completados oficialmente neste 15 de agosto, tive a sorte de entrar no tema há 40 anos, e de participar ativamente desde maio de 1997, com relações institucionais, promoção, estudos de mercado, artigos, cursos e palestras. Por isso, o que mais me incomoda, nesse tempo todo, é muito mais as oportunidades desperdiçadas pelo Brasil, do que o pouco que efetivamente se fez, com o mais de US$ 1 trilhão de vendas para a China, para o desenvolvimento nacional e dos estados grandes exportadores de recursos naturais, nos quais o que tem ficado são grandes crateras e áreas devastadas. Há dez anos, o economista Flávio Lyrio Carneiro, em seu artigo "Complementaridade comercial entre o Brasil e a China", apontava a disparidade nas proporções e quantidades de produtos comercializados entre os dois países (no período 2011/2012), no tocante à tecnologia e aos recursos naturais: o Brasil vendendo 244 produtos e a China 784, com, respectivamente,17,2% e 4,1% primários; 29,1% e 19,3% sendo manufaturas intensivas em recursos naturais; 14,3% e 31% de baixa tecnologia; 33,6% e 35,5% média tecnologia; e 5,7% e 10,2% alta tecnologia – com um detalhe importante: nessa faixa "superior": eram 14 produtos brasileiros e 80 chineses.
Distanciamento evidente
Caso não ocorra uma mudança substancial na lógica dominante no Brasil das relações com a China, o gap que se estabeleceu entre o desenvolvimento econômico e social dos dois países evoluirá rapidamente para um Grand Canyon. Um dos indicadores a confirmar essa possibilidade é o grande poder de compra das populações das maiores cidades e províncias da China, maior do que o do Brasil (US$ 15 mil), revelado pelo PIB per capita pela paridade do poder de compra. Em Hainan, Sichuan, Liaoning, Xinjiang, Ningxia, Jiangxi era de US$ 16,5 mil a US$ 17,6 mil; Hunan, Anhui e Shanxi (US$ 18,2 mil); Shandong, Chongqing, Hubei e Mongólia Interior (US$ 21,3 mil a US$ 23,9 mil); Guangdong (US$ 25,3 mi)l; Zhejiang e Tianjin (US$ 29,4 mil); Fujian (US$ 31,4 mil); Jiangsu (US$ 35,8 mil); Shanghai (US$ 44,6 mil); e Beijing (US$ 47,2 mil). A província de Guangdong teve um PIB em 2022, pela paridade cambial, igual ao do Brasil: US$ 1,9 trilhão. A província de Jiangsu (US$ 1,8 trilhão) e a de Shandong (US$ 1,3 trilhão) chegaram perto. Expressa pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, a qualidade de vida das populações dos países pode ser assim comparada: em 1980: a China com IDH 0,407, e o Brasil com IDH 0,545, estavam abaixo da média mundial (0,561). Em 2020, a China alcançou 0,76, e o Brasil com 0,758, ambos acima da média mundial (0,737), e praticamente empatados no ranking – o Brasil em 84º e a China em 85º (em 2011, o Brasil estava nesse 84º e a China em 101º, ou seja, ela eliminou o gap existente). Nos anos seguintes, o gap se inverteu: a China avançando para 79º (2021) e 75º (2023), e o Brasil regredindo para 87º (2021) e 89º (2023).
Avançando rapidamente na automação industrial, a China chegou em 2022 em quinto lugar entre os países com maior quantidade de robôs, ou 392 para cada 10 mil operários. Ainda longe das proporções da Coreia do Sul (1012) e Cingapura (730), e muita próxima do Japão (397) e da Alemanha (415), a China instalou 290 mil novos robôs em 2022, mantendo uma taxa de 13% de crescimento anual no período 2017/2022, de acordo com o World Robotics 2023 Report. Para que se tenha uma noção da velocidade do crescimento anual da automação na China, em 2012 sua participação era de 14% do total mundial e dez anos depois saltou para 52%. Significa dizer que é muito provável que até 2030 a China seja o país mais automatizado do mundo, com 70% ou mais do total, o que coloca a questão do destino das atuais 38 milhões de pessoas que trabalham na indústria transformadora chinesa.
Pressão para parar a China
É essa locomotiva que a União Europeia e os Estados Unidos seguem pressionando duro para que reduza as exportações, com o discurso do "excesso de capacidade industrial" e do risco do país "inundar o mundo" com os seus produtos vendidos "por preços abaixo do custo de produção", a exemplo do que estaria ocorrendo com o aço, produto no qual a China respondia por 15% do total mundial em 2000, e que deve chegar a 54% agora em 2024. No caso da América Latina, com 56 milhões de toneladas de produção em 2000 e 58 milhões em 2023, a China vende 10 milhões de toneladas, equivalentes a 1% dos 1 bilhão de toneladas que produz por ano.O relatório de 2023, enviado pelo representante comercial dos EUA na China ao Congresso norte-americano, em fevereiro de 2024, não poupa adjetivos. "A China continua a ser o maior desafio ao sistema de comércio internacional estabelecido pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Já se passaram 22 anos desde que a China aderiu à OMC, e a China ainda adota uma abordagem dirigida pelo Estado e não mercantil à economia e ao comércio, o que vai contra as normas e princípios incorporados pela OMC", dizia o documento.
Essa é a grande discordância dos Estados Unidos e da União Europeia: a atuação do Estado na China. Pelo visto, esqueceram bem rápido a crise mundial de 2008, causada pela crise do setor financeiro norte-americano que ocorreu justamente por omissão do Estado, via excesso de liberdade e falta de regulamentação do mercado. Quererem agora que a China altere a sua lógica de funcionamento, a partir de critérios que consideram os mais corretos, algo inaceitável para seus governantes. As acusações de não ser economia de mercado, de praticar dumping, e de subsidiar a produção e a exportação são antigas, mas nenhum desses países têm moral para acusar qualquer outro de protecionismo ou subsídios. Ainda menos de exigir menos Estado a quem conseguiu chegar aonde chegou graças justamente à atuação do Estado.
Para os Estados Unidos, "ainda mais problemático, a abordagem da China tem como alvo as indústrias para o domínio do mercado global por empresas chinesas, utilizando uma série de políticas e práticas não mercantis em constante evolução. Este relatório detalha a amplitude e a escala das políticas e práticas não mercantis da China e os graves danos que causam aos trabalhadores, às empresas e às indústrias nos Estados Unidos e em todo o mundo." Lembra a situação relatada no livro "A ditadura dos cartéis: anatomia de um subdesenvolvimento", de Kurt Mirow, a respeito da atuação das empresas estrangeiras (norte-americanas e europeias) para obter o mercado consumidor brasileiro todo para elas.
Esse relatório norte-americano vai além da análise, pois conclama outros países a também reagirem contra o crescimento comercial chinês. "É um lembrete claro de que os membros do sistema de comércio internacional devem continuar a trabalhar em conjunto para defender os nossos interesses comuns contra estas muitas políticas e práticas prejudiciais, especialmente em setores visados pelos planos industriais da China", convoca. Portanto, está declarada a guerra: "a administração continua a tomar medidas para resolver o excesso de capacidade não mercantil da República Popular da China e as distorções nos principais setores económicos."
Paradoxos setoriais
Os absurdos tipicamente brasileiros constituem uma questão à parte na relação com a China. A começar pelo setor do turismo: enquanto o radar da Embratur segue ignorando a China – agora como há 20 anos –, os países europeus, Canadá, Estados Unidos, por exemplo, fazem a festa com o boom do turismo chinês. Temos atrações únicas, como a Amazônia, que interessam muito a quem terá que viajar um dia para chegar e dois para voltar, mas para conseguir que venham temos que investir sistematicamente em promoção turística, como fazem aliás todos os países que recebem muitos milhões de turistas internacionais a mais do que o Brasil.
Quem vende anualmente 25% do minério de ferro que a China compra do mundo, pode depois comprar o aço que ela fabrica, mas certamente esse não é o melhor negócio do mundo, não é mesmo? Não há mágica que explique o aço chinês custar menos no porto brasileiro do que o aço fabricado no Brasil. Muito menos a desculpa do "Custo Brasil". Tem mais coisas a serem consideradas: da margem de lucro aos custos financeiros exorbitantes e de transportes. Uma coisa é certa: o aço fabricado no Brasil tem que custar menos do que o que viaja 10 mil quilômetros para chegar aqui. Idem o papel kraft fabricado com a celulose importada do Brasil, livros impressos do outro lado do mundo e outros produtos, como a cerâmica de revestimento (porcelanato), que começou a ser fabricada em Santa Catarina há 20 anos com argila chinesa e depois passou a ser produzida em solo chinês.
Integrantes do agronegócio certamente já se deram conta que vai demorar muito tempo para a Índia neoliberal, que tem população maior do que a chinesa, comprar do Brasil 20% do que a China socialista compra de alimentos. Idem países também populosos da Ásia Central e da África: falta-lhes dinheiro para comprar comida. A somatória de redução da natalidade e de envelhecimento da população da China, mais a busca permanente de outros fornecedores, e o aumento da sua produção agropecuária, para reduzir a dependência alimentar que tem do Brasil e de outros países – vulnerabilidade que não lhe agrada e que reduzirá ao máximo nos próximos anos –, coloca para o agronegócio brasileiro muitas incertezas para 2030, porque tem muita capacidade instalada e quer vender mais. A tendência é de redução das compras chinesas do Brasil, mas a partir de quando, em que ritmo e até quanto?
O cenário mais provável, a partir de agora, é de redução progressiva da demanda alimentar, por redução crescente da população, e aumento da parcela de pessoas idosas em toda a Europa, Coreia do Sul, Rússia, China e Japão (e no Brasil). Aumentará a população e o envelhecimento populacional norte-americano. A anunciada explosão populacional na Índia e em alguns países asiáticos e africanos ainda terá de ser comprovada na prática, porque todos eles são países com milhões de pessoas passando fome, sem dinheiro para importar as quantidades de comida necessárias e sem condições favoráveis de água e solo para ampliar a produção agropecuária.
Há espaço para vendas de produtos diferenciados (orgânicos, agroecológicos e extrativistas), de cooperativas de pequenos produtores, para nichos de mercado, tanto de alimentos como de bebidas. É nisso que apostam as empresas que participarão do Salão Internacional da Alimentação (Sial), em Shanghai, de 28 a 30 de maio, da Feira de Alimentos Orgânicos, em Guangzhou, de 14 a 16 de junho, e da Feira de Importação da China (CIIE), também em Shanghai, de 5 a 10 de novembro. E há espaço também para produtos como o sorgo, principal matéria-prima do Baijiu, a "cachaça" chinesa. A China compra US$ 3 bilhões por ano de sorgo do mundo, sendo 100 mil toneladas de nosso vizinho Uruguai, de quem compra quase toda a lã de ovelha "suja" e mais da metade de todos os tipos de lã.
Para vender e para comprar, para atrair investimentos, e para representar empresas chinesas no Brasil, precisamos estudar a China. Empresários e executivos de empresas, dirigentes de entidades empresariais e sindicais, inclusive das áreas educacional, cultural, ambiental e esportiva, mais integrantes de governos, legislativos e judiciário nos três níveis devem fazer isso em razão de três razões básicas. A primeira é que poucas universidades no Brasil estudam China, em geral apenas na pós-graduação. Quantos estudantes do Brasil estão na China? A China manda para os Estados Unidos, todos os anos, mais de 300 mil estudantes, em um programa de Estado desenvolvido desde 1979. Lembro-me da promessa do Ciência sem Fronteira, de enviar 5 mil estudantes para a China – foram menos de 500, e o fator limitante, por incrível que pareça, não foi o mandarim. Foi o inglês, pois o curso de mestrado para estrangeiros é lecionado nessa língua, e poucos estudantes universitários no Brasil são fluentes em inglês.
O segundo motivo é que até 2030 o gap atual entre os dois países se transformará em um Grand Canyon, o que tornará mais difícil para o Brasil sair da condição atual de exportador de produtos básicos para a condição de parceiro efetivo na produção industrial de alta tecnologia. E, por fim, nesse mesmo período a China será a maior economia mundial, ultrapassando os Estados Unidos e consolidando-se como maior mercado consumidor. E o Brasil segue vendendo para lá menos de 3% de tudo o que país importa do mundo, com menos de 3 mil empresas exportadoras. Sim, vender para a China é difícil, por "n" razões. Apesar disso, o mundo inteiro vende para o mercado chinês. Temos seis meses para nos preparar e participar com sucesso da 7ª Feira de Importação da China (CIIE), que ocorrerá de 5 a 10 de novembro. A ApexBrasil está trabalhando para que a participação brasileira nessa edição da CIIE seja maior do que foi no ano passado.
Certamente os próximos 50 anos serão mais complexos nos dois países. Tomara que consigam evitar que se forme um Grand Canyon entre eles, e reverter os muitos gaps, na indústria, nas questões ambientais, no desenvolvimento econômico e social e nas áreas cultural, esportiva e educacional. Por incrível que pareça, Brasil e China têm o mesmo problema populacional, pois no horizonte está colocada a diminuição de suas populações e o enorme aumento da quantidade de pessoas idosas, fenômeno que elevará sua proporção em 2050 para 30% a 35% do total – algo como 80 milhões no Brasil e 400 milhões na China.
Esse cenário aumenta a responsabilidade com o futuro que está disponível para a juventude, a começar pelo acesso ao ensino médio (cursos técnicos e tecnológicos) e ao ensino universitário e, na sequência, por empregos de qualidade. Ano passado, o "Gaokao" bateu recorde na China, com 12,9 milhões de estudantes participando. Tanta gente entrando nas universidades, e tanta gente formada (mais de dez milhões) saindo, em busca de emprego é cada vez mais raro. Lá e cá, a maior taxa de desemprego é a dos jovens. Sem perspectivas no futuro imediato, muitos jovens não querem ter filhos, seja na China, seja no Brasil e em muitos outros países, reduzindo ainda mais a natalidade e aumentando ainda mais a proporção de pessoas idosas.
Este artigo foi originalmente publicado na edição 346 de AMANHÃ. Acesse a íntegra da revista clicando aqui (mediante pequeno cadastro).
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