Passagens da vida

Viver a vida internacional é como bater um pênalti. Uma hora você vai perder um
A vida internacional é regida por protocolos (Ilustração: imagem do Facebook do autor)

1 - Ontem tivemos uma das melhores noites do ano. Pode não ser grande vantagem, visto que 2024 só está começando. Mesmo assim, vale o registro. Comemos bem, bebemos um bocado, demos muitas risadas deste mundo e, é claro, de nós mesmos.

2 - Como estávamos num restaurante japonês, contei a história de um jantar que o presidente da Mitsui ofereceu a mim e a dois dos nossos acionistas, que me acompanhavam numa viagem ao Japão. Ele explicou que o "tempura" era uma herança culinária ocidental.

3 - Foi o religioso Francisco Xavier que, ao desembarcar em Kagoshima, no século XVI, convenceu os japoneses de que tinham que temperar uma comida que lhe pareceu sem alma, hospitalar. Logo os japoneses empanaram o camarão com ovo, essência do "tempura".

4 - Um de nossos acionistas, enlevado pelo saquê, disse: "Poxa, quem diria, hein? O cara quietinho lá em Uberaba, com aqueles óculos escuros e aquela peruca estranha, exerce essa influência toda até aqui nessa lonjura. E tudo isso só com a força do espírito." Estourei de rir.

5 - Ricardo Ermírio estava atribuindo ao médium Chico Xavier a inovação culinária japonesa. E não a Francisco Xavier, fundador da Companhia de Jesus, depois tornado santo. Na crise de riso, diante dos japoneses perplexos e constrangidos, foi difícil retomar a pauta empresarial.

6 - Mas eu também fiz minhas besteiras no Japão. Quando decidimos ir adiante na parceria com a Nissho Iwai, achando que estava dando um grito de estímulo aos bons tempos, eu disse: "Tora, tora, tora". Meu improviso em japonês não podia ter sido mais infeliz.

7 - "Tora, tora, tora" era o código da esquadrilha de Yamamoto no bombardeio à flotilha americana em Pearl Harbour. O que levou os EUA a entrarem na guerra e, mais tarde, a que estourassem duas bombas atômicas sobre cidades japonesas. Minha gafe foi inominável.

8 - Fato igual à exortação que fez um amigo consultor num restaurante da Liberdade, na confraternização com os japoneses. Como era aniversário de um deles, berrou: "Banzai". Ora, só o Imperador pode ser saudado assim: "Tenno Heika Banzai". Ou, então, é um grito de guerra kamikaze.

9 - Em Bangcoc, Tailândia, o embaixador brasileiro a quem coube a desagradável missão de acompanhar a caça a PC Farias, me contou num tenso jantar que lhe ofereci no Mandarin Oriental que todo mês um brasileiro era preso ali por fazer um comentário jocoso sobre o Rei.

10 - Ou por algum gesto involuntário que denotasse desrespeito ao budismo. Como, por exemplo, cruzar as pernas e mostrar a sola do sapato a um monge de túnica. Como pode um país tão tolerante, gentil e permissivo como a Tailândia ser, ao mesmo tempo, tão rigoroso?

11 - Na Alemanha, quando estudava lá em 1976, meu amigo Israel Weiss, estudante de Haifa, filósofo e um tanto boquirroto, não gostou quando Herr Kappel, nosso professor no Goethe, o repreendeu por trocar bilhetinhos com a linda francesa Madeleine.

12 - Injuriado com o que lhe pareceu uma injustiça, Israel guardou o ressentimento. Quando nos encontramos para um passeio no Bodensee no sábado seguinte, em trajes de primavera e mais informais, ele levantou o braço e disse "Heil, Hitler" ao professor. Na hora, viu a gafe.

13 - Precisou Pinhas Zimmerman, um cara mais sóbrio, pedir desculpas ao professor e esculachar o próprio amigo e compatriota por uma brincadeira algo pesada. Herr Kappel nos contou um dia a triste história da família dele na Guerra. Vida é aprendizado.

14 - Meu rosário de desditas está longe de acabar. Muito longe. Nos EUA, respondendo por um processo de dumping no International Trade Commission, insultei o peticionário da ação na corte, a Hercules. Disse que com aquela ação torpe, eles estavam debilitando o país.

15 - Para completar e espicaçar os jurados, eu disse: "É por isso que os japoneses estão comprando tudo aqui: MGM, Rockefeller Center. Akio Morita está reduzindo vocês a fanfarrões etnocêntricos que não sabem ler o mundo. O cacete que vocês levaram no Vietnã não lhes ensinou nada."

16 - Jim Taylor, meu advogado, da prestigiosa banca Dorsey & Whitney, de Washington, que nos custou centenas de milhares de dólares, interviu para retirar dos autos a minha fala, pedindo desculpas que, na verdade, eu me recusei a pedir. "Não quero que você saia daqui para a cadeia." Não pisquei.

17 - A vida internacional é cheia dessas coisas. Preparei milhares de executivos no Brasil e no mundo para lidar com as zonas sombrias, com os não-ditos das reuniões onde mais de uma cultura está representada. Os tabus hoje estão mais aflorados, o que é natural no mundo dos algoritmos.

18 - Reagan ergueu um brinde em Brasília à prosperidade do povo da Bolívia. Era só uma questão de "bês". Ele mesmo ligou furibundo para Begin para dizer que parasse com o bombardeio no Líbano, que aquilo era um "Holocausto". Begin parou incontinenti. Fez um muxoxo, mas entendeu a hipérbole.

19 - São muitos os códigos a assimilar nos dias de hoje. Impõe-se cuidado ao falar de homossexuais, negros, índios, ciganos, gordos, leprosos, moradores de rua e drogados. Isso num só país. O que não dizer de dominar os códigos de 20, 50, 100, 150 países, sei lá?

20 - Meu amigo e mentor Richard Lewis, 93 anos, 14 línguas, treina o corpo diplomático da Finlândia e da Estônia. Além do mais, media conflitos com o Japão, visto que foi tutor da Família Imperial. Quando nos conhecemos, passamos dias contando casos um ao outro em Riversdown.

21 - Vi uma vez o empresário Franco Miroglio, de Alba, dizer ao representante japonês que a performance de vendas dele tinha sido tão baixa que, no lugar dele, cometeria harakiri. O pobre do Tanaka corou com um tomate enquanto os italianos riam com galhardia.

22- O mesmo empresário, dono de uma grande fábrica no Piemonte e com empreendimentos na China, nesta mesma reunião, disse à agente na África do Sul que com semelhantes olhos verdes e formas de Vênus de Milo (falava dos seios da moça), ele viveria com prazer sob o appartheid.

23 - Já me enredei em polêmicas políticas no Chile, na Colômbia, na Venezuela e na Argentina. Já troquei sopapos com um rufião no Paraguai, fugi da morte em El Salvador e no México. Na Indonésia, vi ingênuos terem rito sumário de forca por ter droga na prancha de surf.

24 - Conheci iletrados de toda ordem. François Hollande, Presidente da França, foi à China pela primeira vez quando tomou posse. Isso é imperdoável. Tenho amigos microempresários que já tinham ido 200 vezes. Meu representante em Barcelona chama árabes de mouros e acham que eles usam cimitarras.

25 - Meus ancestrais maternos foram marcados pela Guerra do Paraguai. O noivo da minha tia-bisavó morreu lá. Muitos atribuem ao Brasil a pecha de genocida pelos 280 mil paraguaios mortos, ou dois terços da população. Seria Itaipu parte da reparação do Brasil à nação-irmã? Ninguém reescreve a história.

26 - Viver a vida internacional é como bater um pênalti. Uma hora você vai perder um. Quem não perde é quem nunca bate. O ativismo vive de colocar uma lupa nas fraturas. Quando dou seminários a respeito, também pareço aos olhos da plateia maior e mais virtuoso do que sou. Mas eu falho.

27 - O cineasta dinamarquês Lars Von Trier, embalado pelo papo lisérgico com um jornalista, disse que "simpatizava um pouco com Hitler", o que lhe valeu a expulsão de Cannes. Galliano, bêbado no Marais, foi filmado dizendo sandices antissemitas. Perdeu a cadeira na Dior.

28 - Em 1973, na França, com 15 anos, ouvi um parisiense dar um esporro num rapaz no metrô. Fui ao dicionário: arbiche, figue, basané, melon, Ben Couillon, coucouss, crouillat, sidi, moricaud, bicot. Eram só umas poucas palavras para insultar os árabes. Língua também é vida!

29 - Os chineses nunca perdoaram Obama por ter puxado o premiê chinês pela manga do paletó, como quem cutuca um serviçal. O maior povo do mundo, o mais etnocêntrico e orgulhoso, achou uma afronta a 1,5 bilhão de pessoas. "São grosserias de negros", eles dizem até hoje.

30 - Uma vez no jogo Alemanha e França, no Maracanã, Dilma Vana, a presidente, foi vaiada. Meu amigo Jules, de Lille, ficou chocado. "Na França, não se assovia em protesto contra um Presidente em público. É pérfido, por menos que se goste dele." O choque dele era nítido. Eu estava ao lado.

31- Quando o boquirroto do presidente da Venezuela desandou a falar mal de um ex-primeiro ministro espanhol, achando que estar com seu opositor político o autorizava a destratar um antecessor, o Rei Juan Carlos tomou-se de ira santa e lhe sugeriu, com veemência, que se calasse. Era um Bourbon enquadrando um maloqueiro antilhano. Todo mundo achou lindo.

32 - A vida internacional é regida por protocolos. Isso não impediu que De Gaulle gritasse "Vive le Québec libre". A profanação de símbolos nacionais - bandeiras, emissários, hinos nacionais - nos EUA dá cadeia e processo de traição à Pátria. São arremedos para conter a perfídia.

33 - Até na gastronomia, as gafes e os deslizes estão ao nosso serviço. Um grande intelectual francês, apresentado à feijoada por uma autoridade brasileira, assim descreveu o prato: "Quando vi a cumbuca fumegante, pensei que fosse m... Quando comecei a comer, lamentei que não fosse." E daí?

34 - Em Portofino, meu pai quis colocar queijo ralado no espaguete de frutos do mar. O garçom fez cara feia. Percebendo o boicote à sua vontade soberana, papai deu uma porrada na mesa que assustou o restaurante e a Ligúria inteira. "Diga a esse fascista que eu como o que eu quero. Que Mussolini morreu. Cadê o cacete do queijo?"

35 - Terminamos nossa noite de ontem bastante alegres, eu só contei até a terceira garrafa de saquê. Somos todos ignorantes do que se passa no mundo, não dá para acompanhar os "ismos" todos. Na minha vida de poucas glórias, entesourei milhares de histórias vividas, lidas e ouvidas.

36 - Num romance de Vargas Llosa, ele fala de um pacífico vilarejo andino onde um comando do Sendero Luminoso toma de assalto o local. Primeiro, ateiam fogo às lhamas. O mudinho que cuidava delas enlouquece, ele as via como pessoas, conversava com elas.

37 - Segundo, o grupo reúne todos os moradores numa praça e resolve fazer uma espécie de um tribunal do povo. Era hora de todo mundo apresentar queixas contra quem era rico, arrogante, acumulador, esnobe, elitista, usurário e ganancioso. Foi uma execração. Um pogrom andino.

38 - Terminada a farsa, os terroristas ordenaram a morte dos culpados e foram embora, já pensando em saquear e "conscientizar" a próxima cidade. Na cidadezinha devastada, onde todos tinham vivido bem até então, as feridas deixadas por aquele dia de auto-da-fé jamais cicatrizariam.

39 - Para os terroristas, cujo negócio era dividir em benefício próprio para daí se aproveitar do imbróglio e ganhar legitimidade diante de dilemas que, quando não existiam, eram forjados, aquele fora um dia igual a muitos outros. Uma hora, seriam pegos na sua falácia. Todos serão.

40 - O que os moradores por certo jamais esqueceram foi que naquele dia se soube quem na cidade estava à procura de bodes expiatórios para quitar suas dívidas sem pagar; quem queria apontar para o outro para acobertar sua própria torpeza e seu oportunismo. Isso é global e local.

41 - Uma vez meus primos de Garanhuns anunciaram que chegariam ao Recife. E que ficariam na nossa casa. Eu era criança. Tomado de alegria, resolvi ajudar meus pais a resolver o problema das camas. "Terezinha dorme no chão", eu disse. Terezinha era a empregada. Meu pai me fuzilou com um olhar que jamais vou esquecer.

42 - Então me levou até o quarto, me deixou de castigo até o dia seguinte sem jantar e disse: "Nunca se volte contra os que estão ao seu lado no dia a dia para acolher quem está de passagem. Não se apedreja os mais humildes de sua casa em benefício de outros, mesmo que sejam seus primos. Seus primos voltam; ela fica. Não seja aprendiz de mau caráter."

43 - Nunca esqueci. Não se esqueçam disso. Esqueçam todo o resto o que eu disse acima, mas não disso. Acabou a trégua do almoço. É hora de trabalhar. Combater a ignorância, o oportunismo e a má-fé é obra de uma vida. Mas isso não faz de nenhum de nós perfeito. 

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Sábado, 27 Abril 2024

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