O egípcio
Acabo de desembarcar do longo voo que me trouxe de São Paulo. Ainda no aeroporto, pronto para o que promete ser uma escala mais longa do que eu imaginava, cumprimento efusivamente em despedida meu companheiro de voo, o simpático Anwar. "Minha conexão para Alexandria está no horário. Graças a Deus, chegarei em casa a tempo. Guarde meu cartão de visita. Se me der a honra de uma visita um dia, será recebido como merecem os bons viajantes". E me sapecou três beijos nas bochechas.
Anwar viajou sentado ao meu lado, com uma providencial cadeira vaga entre nós dois. Sendo ambos corpulentos, precisávamos de espaço já que nossos orçamentos limitados não nos permitiam voar nas cadeiras da classe executiva. "Já tive mais dinheiro, mas agora acho desperdício gastar o dobro ou mais por só um pouco mais de conforto", disse. Assenti sem muita convicção. "Veja que eu dificilmente encontraria um cavalheiro simpático como você se estivesse sentado mais adiante". Apenas balancei a cabeça e sorri. "Obrigado, bondade sua".
Quebramos o gelo antes da decolagem com uma conversa nada prosaica. Vendo que ele se aplicou uma injeção na barriga, e como nossos olhares se cruzaram, perguntei se era diabético. Não, que Alá o livrasse. "É meu fator de coagulação. Com a injeção, mesmo que durma sentado por horas, não corro o risco de ter problemas circulatórios nas pernas". Falei-lhe que eu tinha a mesma preocupação, mas que para tanto só tomava aspirina e usava meias de compressão. "Também faço isso, mas a injeção dá mais tranquilidade".
Anwar contou-me que tem seis filhos homens e duas meninas. "Importo carne do Brasil. Que país extraordinário, quisera o Egito ser tão abençoado". "Será?", perguntei. "Tenha certeza. O Brasil tem pouca pobreza comparada com o que vemos no meu país. Temos alta corrupção nos dois lados e a juventude fica espremida entre o desemprego e a fantasia de ficar rico, o que gera desesperança. Mas o Brasil tem indústria e tecnologia. E a natureza mais generosa do mundo. Quanto a nós, ficamos parados na dependência do Nilo, vivendo das glórias dos faraós".
Mas o que mais sobressaiu da conversa bonachona de meu novo amigo foi o original conceito de patrimonialismo. "É justo que um político queira se dar um bônus pelo sucesso. Não é fácil se eleger. Bajula-se muita gente. Sacrifica-se a vida da família. Fere-se mandamentos de consciência e, em alguns casos, os mandamentos de Alá que tudo preside. Para se redimir, ele precisa de meios para continuar no topo. Ora, os empregos do Estado, as empresas do Estado e a máquina do Estado, de alguma forma pertencem por direito a ele. Parece que você não concorda, mas assim é o mundo".
Na despedida, estivessem alguns amigos em meu lugar, é possível que jogassem fora o cartão de Anwar. Não foi meu caso. Muito embora não ache que os conceitos de democracia sejam lá tão relativos quanto ele julga, ignorar sua perspectiva cultural de origem seria fazer tábula rasa do muito que o mundo me ensinou. E uma dessas coisas foi a de que não devemos sacrificar o indivíduo no altar das bizarrices políticas, por chocantes que elas possam ser. As conceituações da democracia ocidental são menos universais do que imaginamos. Ou gostaríamos que fossem.
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