Joël, o rei do purê de batatas
Joël Robuchon, o maior acumulador de estrelas do guia Michelin de todos os tempos, colecionou ao longo de uma vida profícua alguns galardões que, por si sós, encerravam forte dose de ironia. A mais flagrante delas, talvez, seja o fato de ter popularizado mundialmente sua aclamada receita de um prosaico purê de batatas, uma guarnição que nove entre dez pilotos de fogão diriam saber executar em um nível muito além do satisfatório. Ora, para alguém que ganhou 28 das estrelas mais cobiçadas do universo culinário, seu purê deveria ser tão desimportante quanto destacar Pelé pela capacidade de fazer embaixadinhas, um fundamento menor. Mas não foi o que aconteceu.
A verdade é que Robuchon, falecido segunda-feira última em Genebra, Suíça, fazia desse fundamento bisonho um estandarte das diferenças que contam. Ora, para cada quilo de batata cozida, seu purê levava nada menos de 200 gramas de manteiga gastronômica. Da mesma forma, quando você for ao restaurante e se deparar com o invariável tartar de salmão com cebola picada e ervas frescas, saiba que por trás de uma criação tão singela quanto prática, temos o dedo do Mestre. O mesmo vale para o raviole de lagostim, que se tornou outra marca autoral. Um de seus dogmas era não misturar mais de três sabores num só prato, para que cada elemento pudesse ser detectado e apreciado a pleno.
Numa época em que se falava muito de ócio criativo, fórmula que rendeu fortuna ao italiano Domenico de Masi, Robuchon resolveu levar seus mandamentos ao pé da letra e, aos 50 anos, foi viver no litoral espanhol. Mas foi só começar a frequentar os bares de tapas para perceber que havia um nicho a ser explorado por quem rompesse a distância entre a haute cuisine francesa (ou não) da clientela. Foi daí que nasceram os famosos ateliês gastronômicos onde a marca registrada continua a ser a convivialidade. Foi o que ele fez. Quantas vezes você não viu enormes mesas comunitárias com bancos altos, ensejando animada interação? Em vez de paz, mais negócios. Esta foi a segunda ironia.
Colaborador do Larousse Gastronomique, a bíblia do ofício, e sendo ele próprio autor de 20 livros, Robuchon não conheceu fronteiras. Profundamente ligado ao Japão e à Espanha, tinha restaurantes três estrelas em nada menos do que quatro lugares, quais sejam, Macau, Las Vegas, Tóquio e Hong Kong, distribuindo as outras 16 em outros tantas casas aconchegantes. Com a morte de Paul Bocuse, eis que a França sofre outra baixa de peso. Amigo do futebol, deixa um patrimônio tangível estimado em mais de 75 milhões de euros. Atingido por um câncer no pâncreas, manteve estrita discrição a respeito da enfermidade e deixa órfãos os que, como este escriba, o admiravam de uma vida.
A morte o colheu no auge da maturidade, cúmulo das ironias supremas.
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