Jamais saberemos como eles seriam

Ariel e Kfir jamais serão. Eis a dor suprema. E esta, hoje, é de todos nós
Para todos os efeitos, pensam eles, milhares de crianças morreram nessa guerra. O que faria dos irmãos Bibas e da mãe mais vítimas do que as demais?

1 – Hoje Israel recebeu os corpos de duas crianças. Judeus do mundo inteiro viveram o momento como se tivessem perdido parentes próximos – não importa que essa triste realidade já fosse do conhecimento geral há alguns meses. Hoje, porém, a dureza da cena a tornou tangível. Ainda assim, a imagem dos ruivinhos Ariel e Kfir revolve sentimentos de apreensão difíceis para os não-judeus. É para eles que falo. Para todos os efeitos, pensam eles, milhares de crianças morreram nessa guerra. O que faria dos irmãos Bibas e da mãe mais vítimas do que as demais?

2 – Todo judeu tem uma conexão emocional com o Holocausto. Das tantas imagens que permeiam o genocídio da Segunda Guerra, são as das crianças as que mais capturam a dor da perda. O desamparo dos pequenos ao ser separados das mães significa para a vida judaica - fortemente nucleada na família – a dor das dores, a crueldade insanável, o assassinato do Amanhã e da Esperança. Os Bibas, portanto, são a negação mais frontal ao "Never Again", ao "Nunca Mais", ao "Nie Wieder" – com alguns agravantes. O principal é que eles estavam "em casa".

3 – Israel nasceu apenas mil dias depois da libertação dos campos. O assim chamado lar judaico foi em grande parte uma resposta à barbárie nazista. A pedra angular de sua criação foi refundar uma terra onde os judeus não fossem visitantes que pudessem ser enxotados, quando não pior, a bel prazer dos humores hospedeiros. Em quase oito décadas, Israel perdeu muitas vidas – inclusive de crianças. Ocorre que os Bibas foram retirados à força do país-fortaleza numa falha de segurança de que, no fundo, nenhum judeu se perdoa. Foi um cochilo no plantão.

4 – Quando cheguei a Israel pela primeira vez, me chamou a atenção o zelo de cada um para com as crianças, que pareciam ser filhos de todos. No kibbutz, elas dormiam longe dos pais e viviam numa casa própria, supervisionadas por professoras que pareciam guardiães de um baú de ouro. Para mim, que cresci vendo a descartabilidade das pequenas vidas em famílias que as tinham às dúzias na pobreza do Nordeste, era difícil entender a origem de tanta afeição. Dispensavam-se às crianças as regalias dadas aos idosos. Nada de bronca, cascudo, palmada ou chinelada.

5 – Ao longo da vida, vi que às crianças nos lares judaicos tudo se permite, tudo se aplaude, em tudo elas comovem. Há diversas camadas adicionais no cenário. Odiosamente, o Hamas afirma que as crianças morreram na sequência dos ataques israelenses. Pergunta-se: o que faziam lá? Para um não judeu, dois aspectos causam perplexidade. Por que trocar corpos por prisioneiros vivos com mãos manchadas de sangue? O enterro para os judeus é sagrado. Um dos horrores do Holocausto foi justamente o de não se poder sepultar ou identificar os mortos dos campos.

6 – A tessitura do 7 de Outubro de 2023 se deu por muitos desses ex-presos que falavam bem hebraico e conheciam a fundo as idiossincrasias de Israel. Foi ao trocar 1027 prisioneiros pela vida do soldado Gilad Shalit que se abriu uma brecha para que Israel vivesse seu pior dia. Se pudesse aquilatar as consequências que adviriam desse escambo – uma metáfora do valor que Israel dá à vida dos seus –, o próprio soldado Shalit teria aberto mão da sua. Nada é simples. Muitos dizem que a barbárie é filha dileta da política de segurança sem paz formal. Ninguém sabe.

7 – Já disse isso uma vez e hoje volto a repetir: seus amigos judeus precisam do seu carinho. A sensação de isolamento é abissal. Nem sempre Israel pode escolher os aliados. Dilapidado por uma mídia hostil, premido a fazer valer uma narrativa de aceitação difícil, peça de tabuleiro de políticos delirantes dentro e fora do país, Israel sabe que se assenta sobre fundamentos fragilizados. A morte de Ariel e Kfir assinala o fim de uma época. A retomada não será fácil. Até o 7 de Outubro, Israel era visto como um acervo da humanidade na ciência, na arte e na engenharia social. Isso mudou.

8 – A difusão de imagens de guerra e a entronização de uma liderança que se legitima pela lógica do conflito faz com que Israel seja percebido por um viés suspeito pela imensa maioria dos não judeus. No bojo disso, há o recrudescimento do antissemitismo e a convicção de que não adianta esforçar-se para ganhar a simpatia de quem já lhe tem reservas. Para os judeus, quem não for a seu favor, é contra. O judaísmo funciona como uma imensa rede social. Como tal, o algoritmo da relativização não existe. Hoje, contudo, é dia de pensar em quem Ariel e Kfir jamais serão. Eis a dor suprema.

E esta, hoje, é de todos nós.

Veja mais notícias sobre ComportamentoMundo.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sexta, 21 Fevereiro 2025

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://amanha.com.br/