Alexanderplatz, Berlim
Não sei o que me levou a fazer o que fiz. Mas lembro que peguei uma pedra de uns dois quilos e a arremessei sobre a superfície congelada do rio Spree. Sem sequer trincar a camada espessa, ela estacou num tronco seco que jazia ao pé da pilastra. Desafiando o frio, fiquei imóvel, olhando a torre de vigilância que se erguia adiante, de onde um guarda me espreitava pelo binóculo. Isso foi há 40 anos. Como somos benevolentes ao reler o passado, passei muito tempo interpretando o gesto tolo como uma metáfora. Na tentativa de fragmentar o gelo, marcava posição quanto à Guerra Fria por cujo fim torcia. A verdade nua e crua é que bebera cerveja demais.
Fato é que nenhuma cidade se comparava a Berlim em tensão e dramaticidade. As incursões que fiz ao lado oriental, filtrado pelas catracas de Frederichstrasse, se inscrevem na crônica das mais vãs de tantos caminhos percorridos. Deambulando pelas ruas imensas, entrava nas livrarias para gastar marcos não-conversíveis, mas só havia sucata ideológica à venda. A cerveja dava azia, a salsicha tinha corante e até a mostarda era macilenta. Que espécie de Alemanha era aquela? Não havia contato humano digno do nome e a Stasi estava em todas as partes, no fundo de cada olhar. Sequer as tentações mundanas me animaram a pernoitar lá.
Assim sendo, voltava por Checkpoint Charlie louco pelos néons da Kürfürstendamm. Hoje Berlim já não tem as marcas da divisão que sobreviveram à destruição do Muro. Mentalidades se irmanaram, apesar dos colossais pombais humanos de Warshauer Strasse, versão apocalíptica das superquadras de Brasília. A boemia de Kreuzberg dá o tom mundano a enclaves curdos, turcos e asiáticos, impensáveis na capital do Reich, conforme sonhada por lunáticos. Ariano, então, é o que menos se vê por lá, se é que sei distinguir essa tal raça. À medida que o tempo passa, os remanescentes do setor soviético relaxam e falam mais à vontade sobre o passado.
"Nunca me senti tão judia quanto em Berlim", disse a amiga Silvia Kon tempo desses. Não é uma afirmação fortuita. É uma cidade impregnada de um judaísmo que, por um momento, achou que a assimilação o pouparia dos horrores dos Campos de Concentração. Qual nada. Foi em Wannsee, subúrbio visível da torre de televisão da Alexanderplatz, que se urdiu a "evacuação" dos judeus. Para o futuro, contudo, palpita a imagem da Porta de Brandemburgo e da gente que se abraçava aos prantos, vencido o pesadelo. Eis uma cidade nada banal, sutil e de descoberta árdua. A maioria dos visitantes estrangeiros se sente perdida. Mas asseguro que vale o esforço da descoberta.
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