Perder a mãe

Estou livre para morrer. Já não preciso temer que minha morte manche a felicidade que ela construiu com determinação, carisma e sorrisos
Mesmo quando a vida parece seguir o curso normal, estamos sujeitos a surpresas. No meio da alegria, vem a angústia do nunca mais, uma aflição que trazemos da infância

Na tarde de 30 de abril, eu estava a bordo de um avião da Turkish Airlines que fazia a rota entre Istambul e São Paulo. Lá pelas 15h00, passávamos a 400 quilômetros do Recife, sobrevoando o Atlântico. Acomodado na primeira fila da classe econômica, eu pensei em mamãe. O que ela estaria fazendo ali perto, em plena véspera do feriado de 1 de maio? Às 17h30, eu teria a resposta: naquela mesma hora, ela morria no Hospital Português onde chegara por ordem médica alguns minutos antes. Quando o avião tocou a pista e ativei o celular, a tela já estava coalhada de condolências. No dia seguinte, eu cheguei a Pernambuco para me despedir. Aos 91 anos, ela queria ficar mais por aqui. Tinha planos, escolhia bem os vestidos, não descuidava nem do penteado nem da beleza. Mas não deu, a hora havia soado.

De volta para São Paulo, transcorridos os primeiros meses do sucedido, não há dia em que não pense nela. Quando sento à minha mesa de trabalho, lá está ela que me sorri no centro do porta-retrato. Se lidei bem com a dor em maio, o mesmo não aconteceu em junho, mês em que ela teria completado 92 anos. É como se cada semana fosse marcada por um sentimento dominante.

Mesmo quando a vida parece seguir o curso normal, estamos sujeitos a surpresas. No meio da alegria, vem a angústia do nunca mais, uma aflição que trazemos da infância. Quando vejo nonagenárias como ela brilhando nos palcos ou na vida diária, mudo de canal. Por que justo ela, tão original e divertida, não está mais aqui? Mais do que tudo, que impactos minha vida vai sofrer? Não tenho todas as respostas, apenas pistas.

A primeira é a de que agora estou sozinho no mundo. Não se trata mais de um arroubo literário. É real. Em segundo lugar, aumentou minha margem de liberdade. Posso engordar sem temer o olhar escrutinador nas visitas que lhe fazia. Daí decorre a a terceira: estou livre para morrer. Já não preciso temer que minha morte manche a felicidade que ela construiu com determinação, carisma e sorrisos. Em quarto, rompe-se um vínculo forte com a cidade do Recife, rincão da minha infância e adolescência. O que mais me prende à terra? Um rio e algumas pontes. Por fim, a morte de mamãe abriu um buraco pelo qual posso enxergar uns tantos desvãos da condição humana e da minha modesta vida.

Consola saber que ela deixou saudades em muitos corações. Vi isso no semblante das pessoas nos dias que se seguiram à sua morte, quando a notícia ainda não tinha se propagado. Filha preferida do seu amado pai, irmã mais querida entre todas as suas e mãe e avó imbuída de forte senso de dever, mamãe não veio à vida a passeio. Doce, mas enérgica, assistia ao noticiário todo dia e nada no mundo lhe passava indiferente.

Detestava o politicamente correto e antevia com horror e humor as devastadoras consequências que decorrerão daí. Argumentava com vigor e ligava para se informar quando alguma coisa lhe escapava à compreensão. Dentro de um século, ainda será lembrada pelos descendentes.

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Segunda, 16 Setembro 2024

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