Insensato brilhante
No clássico artigo “Miopia em Marketing”, de 1960, Theodore Levitt faz em determinado momento uma referência a Henry Ford, o lendário homem de negócios a quem se atribui a criação da linha de produção. Levitt comenta que Ford revelou-se, ao mesmo tempo, “o mais brilhante e o mais insensato negociante da história dos Estados Unidos”. Brilhante porque teria inventado a produção serial para, assim, conseguir entregar aos consumidores automóveis que coubessem em seus orçamentos, em um exemplo típico e, quem sabe, pioneiro, de oferta puxada pela demanda. Insensato porque insistira em fabricar carros unicamente na cor preta, indiferente à possibilidade de os clientes considerarem o veículo algo mais do que um meio de transporte. Um livro lançado em meados de 2014 no Brasil corrobora esse veredito.
“Ford: o homem que transformou o consumo e inventou a Era Moderna”, do jornalista Richard Snow (ed. Saraiva, 413 p.), faz um apanhado da trajetória empresarial do célebre norte-americano e credita na sua conta outros feitos além daquele descrito por Levitt – assim como debita erros de avaliação não flagrados no paper seminal do marketing moderno. Snow mostra, por exemplo, que Ford defendia a importância do pós-venda como ferramenta de satisfação e fidelização de seus consumidores, ao postular que as concessionárias da marca devessem se esmerar tanto na prestação da assistência técnica quanto na venda do automóvel. Ele entendia que “um fabricante não encerra o seu relacionamento com o seu cliente depois que a venda é concluída. Até aí ele está apenas começando com o seu cliente”, reproduz Snow (p. 159). Décadas e décadas antes de se constatar que fregueses mal atendidos são os maiores detratores da reputação de uma marca, afirmava que “se o produto não funciona, é melhor que o fabricante nem se apresente, sob pena de ser alvo da pior das propagandas: um cliente insatisfeito” (p.159-160). Seguindo essa mentalidade, Ford era rigoroso com aqueles que se candidatavam a abrir uma revenda da marca. Exigia o equivalente a 20 mil dólares em peças de reposição no estoque, disponibilidade para reparar automóveis Ford comprados em qualquer local e a presença de pelo menos um modelo novo e impecável na vitrine – sem falar na matreira recomendação de rebocar veículos estragados somente à noite, de modo a não chamar a atenção de potenciais novos consumidores.
A transformação que Ford ajudava a principiar no mundo empresarial e no marketing, em particular, era pequena perto da revolução que o automóvel por ele popularizado promovia nos costumes norte-americanos do início do século 20. “O modelo T quebrou o antigo isolamento do campo”, escreve Snow, e promoveu novos hábitos nos centros urbanos, como o do passeio motorizado de domingo. Em função disso, Ford tinha a devoção de seus compatriotas. As pessoas escreviam-lhe cartas agradecidas pelo que o Modelo T proporcionava de benefício em seu dia a dia.
O curioso é que as manifestações de envolvimento dos consumidores com seus automóveis não foram capazes de alertar Ford para o caráter emocional que o produto passava a assumir e, por consequência, para as oportunidades que tamanha transformação representava. Exatamente nesse momento começava a se manifestar a face insensata do brilhante homem de negócios, sobre a qual continuaremos a falar na próxima semana.
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