Um dilema atual

Quando escrevi "Ao redor do mundo" há exatos 20 anos – ele só foi lançado em 2000 e no próximo ano completará um importante aniversário –, apresentei um case que na época pareceu exagerado para alguns leitores. Falando do choque cultural, descrevi a ...
Um dilema atual

Quando escrevi "Ao redor do mundo" há exatos 20 anos – ele só foi lançado em 2000 e no próximo ano completará um importante aniversário –, apresentei um case que na época pareceu exagerado para alguns leitores. Falando do choque cultural, descrevi a epopeia do brasileiro Pedro que, transferido para o Japão, no quadro da criação de uma equipe de competências diversas de uma multinacional nipônica, entra em parafuso com os hábitos locais e somatiza o desconforto que sente com os padrões de convívio e de socialização. Ele simplesmente não se deu conta que aí residia o melhor da experiência.     

Ora, para Pedro, ele estava no Japão para executar tarefas. Queria sim trabalhar, ganhar seu dinheiro, e nada tinha contra um dedo de prosa fora do ambiente de trabalho com os colegas. Mas o fundamental era ser avaliado pelo seu desempenho técnico. Assim, terminada a hora regulamentar do trabalho, ele queria sair para jogar squash, assistir filmes em casa e escrever para a namorada. Ir a bares de saquê, cantar nos karaokês (o que dá uma dimensão igualitária aos diversos níveis hierárquicos), lhe parecia de somenos. Sem acesso aos códigos culturais inerentes a seus empregadores, ele ficou cada vez mais isolado e desistiu.

Ora, ora. Naquela época, estávamos ainda muito distantes do treinamento binário que grassou desde então, baseado no respeito cego a normas e procedimentos, no senso estreito e seguro da missão e na digitalização das relações humanas, a ponto tal que a própria voz de um colega ao telefone soa como uma invasão de espaço. Por que não deixar tudo por escrito e evitar transbordamentos que possam trair emoção? Daí infiro que, se me cabe um gesto autocongratulatório, foi o de ter exemplificado lá atrás um fenômeno que está mais do que nunca vivo (e agravado) no mundo em que vivemos.  

Hoje almocei em Aveiro com Germana (digamos que este seja seu nome verdadeiro, já que é de origem alemã). Enfronhada no mercado editorial, deixou a Santa Catarina natal para se encontrar aqui. "É uma cidade linda. Amo os canais, a proximidade do mar e as pessoas. O problema é meu companheiro. Recentemente ele subiu o tom dizendo ´ou Aveiro ou eu`. Acho que ele vai perder. Vivo dizendo que Aveiro vai bem além dos tradicionais ovos moles de sua doçaria. Mas ele, que conseguiu trabalho perto do Porto, acha que as relações aqui na cidade carecem de objetividade. Quando eu digo que isso é o melhor de Portugal, ele se irrita".

Então contei-lhe da velha história do brilhante executivo brasileiro que sofreu todo o peso do choque cultural japonês. Ela parecia sentir um alivio. "É exatamente o caso. Ele não sabe conversar fiado, não se deu conta de que as informações e os insights da empresa onde trabalha acontecem mais informalmente. Daqui não pretendo sair, sabe. Para mim, Portugal hoje combina de maravilha a cultura do progresso com o afeto. Quem estiver desapontado com isso, que faça outra escolha, mas é que não entendeu ainda grande coisa dos mistérios e do fascínio da vida". 

E então, mais afinados, retomamos o papo sobre literatura e editoração.

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Quinta, 02 Mai 2024

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