Padrão helvético de cidadania
Sempre que chego à Suíça, logo me vem à lembrança a figura de um bom amigo sérvio que, até o começo do milênio, trabalhava em Zug, uma pequena cidade conhecida pelas generosidades fiscais, o que faz com que lá tenham sede várias multinacionais bilionárias. No caso dele, era gerente do escritório local de um importante conglomerado industrial da Índia. Homem de temperamento afável e dolorosamente separado do restante da família como resultado dos conflitos balcânicos, vivia ali com a mulher – também sérvia – e um filho. Quando começamos a trabalhar, ele já vivia no país há cinco anos, falava o alemão torto do cantão, e tinha como legítima meta conseguir a cidadania suíça. Conhecedor da natureza dos locais, andou rigorosamente na linha durante todo esse período e sequer uma multa de trânsito levou. Tinha tudo, portanto, para que seu pleito fosse acolhido sem ressalvas.
Sabendo que a oficialização do ato se daria em determinada semana, deixei que transcorressem alguns dias para lhe dar os parabéns. À espera de uma chamada que não veio, resolvi lhe telefonar para tratar de temas relativos a nossos negócios. Aproveitaria para saber mais a respeito dos destinos da briosa família. Pois bem, conversamos sobre tudo nesse mundo: a conjuntura da Índia, do Brasil e do planeta. Falamos sobre a cesta de moedas europeias e o que aconteceria com a introdução do Euro. Perguntei-lhe o que me dizia da situação suíça e até que ponto eles poderiam manter sigilos bancários e afins num mundo que pedia cada vez mais transparência. Como já nos encaminhávamos para o fim e ele nada dissera sobre o tema, resolvi brincar: "Agora que você é cidadão suíço, já está se comportando como um deles. Está medindo as palavras que diz aos amigos. Preferia você como sérvio".
Mas então veio a má notícia. Embora nada impedisse que fosse submetido à nova avaliação dentro de mais um ano, o fato é que ele não fora aprovado naquela rodada. Fiquei perplexo. O que acontecera? Pois bem, verificada a conformidade da papelada e nada havendo que o desabonasse, uma comissão foi encarregada de conversar com seus vizinhos de prédio para saber que opiniões esses nutriam com respeito àquela família. Como não poderia deixar de ser, quase todos fizeram observações abonadoras, confirmando que se tratava de um vizinho cortês, educado, ordeiro, limpo e trabalhador. Mas como nessa vida sempre haverá lugar para as almas ditas suínas, o certo é que os depoimentos de duas velhinhas colocaram abaixo suas esperanças de regularizar em definitivo a situação legal da família. E isso por razões as mais prosaicas do mundo, típicas desse cruel paraíso helvético.
Mas o que elas disseram? Pois bem, a primeira disse que embora gostasse muito dele, tinha ficado incomodada certa feita quando ouviu vozes exaltadas vindo do apartamento depois das 9 da noite. Isso a incomodou bastante e por pouco não chamou a polícia. Mas tinha até anotado a data do ocorrido. Segundo ele, efetivamente, naquela noite revira as duas irmãs que tinham ficado em Belgrado. Depois de anos sem se abraçarem, e embalados pela deliciosa aguardente de ameixa que se toma nos Bálcãs, ele pode ter se exaltado além da medida e, réu confesso, admitia sim que podia ter infringido a lei do silêncio. Os inspetores coçaram a cabeça, chegaram a ficar sensibilizados com a natureza do drama que a família vivia e louvaram abertamente a franqueza dele em reconhecer o fato, o que só somava a seus muitos créditos. Já estavam prontos para relevar o fato, mas então surgiu um segundo.
Como já dito, foi também uma velhinha que terminou por postergar o que se encaminhava para um bom desfecho. Segundo ela, de forma sistemática, a família sérvia vinha profanando os domingos. E tal desrespeito ao dia santo se traduzia no fato de que tanto ele quanto a esposa, lavavam a roupa da casa na data. Segundo os padrões vigentes, trata-se de uma falta grave. Não somente por violar o silêncio como por marchar em descompasso com as rotinas da comunidade de que queriam se tornar cidadãos. Ele ainda tentou explicar que fizera isso algumas vezes porque era o único dia de folga de que dispunham. Disse até que não voltaria a desrespeitar uma regra que até certo ponto ignorava. Mas os argumentos foram de pouca serventia. Se ainda tivessem recebido apenas uma queixa, o perdão poderia ter sido cogitado. Mas com a segunda, era inexorável que o processo fosse arquivado por pelo menos um ano.
Assim é a Suíça (na foto, a cidade de Lucerna, considerada a porta de entrada para a região central do país). Por trás da imagem idílica, há extremo rigor na organização da vida diária. E pouco lugar para a compaixão e empatia para com o que se passa dentro das fronteiras. Muito mais do que espelhar um padrão de crueldade nua e crua, como poderiam pensar os mais apressados, esse traço tem uma matriz cultural. A confiança mútua, sem lugar a exceções, solda os laços de uma população pequena que dominou uma natureza hostil e portentosa. Como se tamanho desafio já não fosse hercúleo, ainda desenvolveu uma sólida base industrial e cientifica. Por último, que ninguém se engane. Os chocolates, os relógios, a mecânica de precisão, os artigos de luxo e a beleza das estações de esqui não esgotam a equação suíça. Pois aqui se trata de um país que leva o serviço militar a sério, a ponto de todo cidadão ter uma arma lacrada em casa. E quando as montanhas se abrem, os caças decolam na vertical.
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