A vida imita o feed

Em uma papelaria de Santa Maria (RS), o retrato dos nossos tempos
Fotos: Beto Albert (Diário de Santa Maria)

Os consumidores podem estar comprando cada vez menos em lojas físicas, preferindo a comodidade das aquisições online. Mas a visita a pontos de venda convencionais ainda permanece como uma experiência reveladora a respeito dos costumes em voga e do espírito do nosso tempo.

É o que sugere uma matéria recente do Diário de Santa Maria. Nela, a repórter destaca que uma das principais papelarias da cidade exibia simultaneamente, em sua área de vendas, apelos para três datas comerciais: Dia das Crianças (12/10), Halloween (31/10) e Natal (A 100 dias do Natal, comércio de Santa Maria já aposta na venda antecipada de artigos para a data), em uma heterogênea overdose de convocação às compras.

O que tem de tão espantoso na reportagem? Bem, se ela não causa espécie é porque o leitor já naturalizou certos fenômenos que, tempos atrás, seriam impensáveis.

O primeiro: celebrar o Dia das Bruxas. E, como bem destaca o texto, não apenas por crianças em seus cursinhos de inglês, mas também por adultos em festas privadas. Comemoração importada dos Estados Unidos no mesmo lote em que vieram os pedidos públicos de casamento, as câmeras do beijo e os jogos de futebol americano, o Halloween foi bem-recebido pelo comércio pois estimula a compra de mercadorias nos mesmos estabelecimentos em que os presentes do dia das crianças costumam ser adquiridos. Considerando as taxas de natalidade decrescentes, aliás, talvez eles até substituam os mimos dos pequenos.

O segundo fator é a antecedência com que a decoração de Natal toma conta dos PDVs. Se há treze anos chamava a atenção deste blogueiro sua aparição no início de novembro, hoje ela foi antecipada em 30 dias, supostamente a fim de tornar mais prática a vida dos consumidores. Se é tão difícil atrair clientes para as lojas, aproveitar sua incerta passagem para aumentar o tíquete médio, levando-o a acumular compras para ocasiões tão diferentes, pode ser uma tática inteligente.

Mas o que mais desperta interesse neste case santa-mariense é que as três datas, separadas por 19 dias (da primeira para a segunda) e por quase dois meses (da segunda para a terceira), são apresentadas ao mesmo tempo, numa rajada de estímulos inescapável e de difícil absorção. Nesse aspecto, o espaço físico parece emular o digital, em que feeds e reels sobrepõem coisas sérias e bobagens, verdades e mentiras, urgências e protelâncias numa sequência feérica, indistinguível e perecível. Ao expor brinquedos, abóboras e Papais Noéis concomitantemente, a tal papelaria parece dizer: compre, compre, compre. Não importa o quê, para quê, nem para quem, mas compre.

Até porque no momento em que o cliente colocar os pés na rua, a batalha por sua atenção (e seu dinheiro) estará perdida, pois os olhos voltarão para a tela do celular — e não é de duvidar que, por lá, já se esteja falando em réveillon e Carnaval.

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Segunda, 20 Outubro 2025

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