Tudo é sobre mim
O consumidor contemporâneo já não aceita mais ser tratado como um dado genérico em uma planilha de CRM. A personalização, que durante décadas foi uma promessa distante — presente no marketing direto, nos primeiros CRMs e na mídia segmentada —, hoje assume o centro das estratégias de branding, impulsionada por tecnologias capazes de analisar comportamentos com precisão milimétrica. No entanto, esse avanço técnico por si só não é suficiente: sem sensibilidade, intenção clara e empatia, qualquer tentativa de aproximação pode soar vazia ou invasiva.
Como resume Ana Paula Passarelli, cofundadora da agência de influência digital Brunch, "a personalização relevante entende o contexto e a necessidade real da marca. O grande diferencial está na capacidade de transformar dados em diálogos reais, criando conexões genuínas e não apenas interações programadas." É justamente esse nível de conexão que tem sido exigido pelas novas gerações, especialmente Z e Alpha, que cresceram cercadas por algoritmos, telas e experiências moldadas sob medida. Para elas, não existe mais espaço para o genérico: tudo pode (e deve!) ser adaptado aos seus gostos, valores e expectativas. A personalização, nesse cenário, deixa de ser um agrado e passa a ser o mínimo esperado, uma base sobre a qual as marcas precisam construir relações que sejam, de fato, significativas.
Os números confirmam essa tendência. De acordo com pesquisa The value of getting personalization right—or wrong—is multiplying, da McKinsey, 71% dos consumidores esperam algum tipo de personalização nas interações com marcas, e 76% afirmam se frustrar quando essa expectativa não é atendida. O dado mais revelador, no entanto, aponta que empresas com estratégias personalizadas bem estruturadas geram até 40% mais receita do que aquelas que ainda operam sob uma lógica uniforme e massiva — o que mostra que, além de cultural e comportamental, essa transformação é, também, profundamente estratégica.
Mas o ponto de virada talvez esteja justamente na forma como as empresas se preparam para lidar com essa nova exigência. "Antes de personalizar, a empresa precisa mostrar que escuta com empatia, que tem processos intuitivos, que reduz a fricção da experiência. Isso transforma a personalização em algo legítimo, e não invasivo", pontua o consultor Cassio Grinberg, autor dos livros Desaprenda e Desinvente. Ou seja, não se trata apenas de saber o que o consumidor deseja, mas de construir ambientes onde ele se sinta à vontade para desejar, explorar e se surpreender.
Afinal, personalizar não é simplesmente repetir padrões baseados no passado — é criar espaços de descoberta, encontrar equilíbrio entre familiaridade e novidade e fazer com que cada pessoa se sinta, de fato, reconhecida. E, nesse processo, os algoritmos são importantes, mas não bastam: a diferença está na capacidade de aplicar tecnologia com propósito e sensibilidade.
Tudo gira em torno de mim
As gerações Z e Alpha nasceram conectadas, em ecossistemas digitais onde o feed é curado, o avatar é customizável e a música do momento é aquela que os algoritmos já sabiam que elas iam gostar antes mesmo que apertassem o play. É nesse contexto que surge, nas redes sociais, um fenômeno curioso e revelador: o chamado efeito E eu?, que viralizou no TikTok e escancarou a sensação constante das novas gerações de que tudo deveria girar em torno do indivíduo. "E se eu não gostar de feijão?", os jovens comentam em vídeos de receitas de feijão nas redes sociais. A piada, claro, tem sua camada irônica, mas também expõe um desejo real de centralidade e uma mudança profunda na forma como as pessoas se relacionam com conteúdo, marcas, produtos e experiências. Tudo precisa falar com elas — e ser sobre elas.
A personalização, nesse cenário, não é apenas uma demanda estética ou funcional. É um reflexo direto de como essas gerações se enxergam no mundo: como protagonistas, com valores próprios, ritmos próprios e interesses altamente específicos. Por isso, para dialogar com elas, é preciso ir muito além de segmentações rasas ou mensagens genéricas disfarçadas de customização. É preciso entrar em sintonia com um público que não quer ser apenas alcançado, mas compreendido.
Ana Paula Passarelli, da agência Brunch, acompanha de perto o comportamento dessas novas audiências. Para ela, o erro mais comum das marcas é confundir personalização com automação. "Essas gerações cresceram em um ambiente digital onde tudo pode ser customizado, desde playlists até avatares. Para elas, personalização não é um diferencial, é o básico. Elas esperam que marcas entreguem conteúdos e produtos que conversem diretamente com suas preferências, mas sem parecer invasivo ou artificial", ensina.
É esse entendimento que marcas como a Docile vêm transformando em estratégia. Em vez de apostar apenas em dados ou automações, a empresa construiu sua abordagem de personalização com base em um propósito simples: espalhar gentileza. E faz isso conectando ações concretas com valores compartilhados pelo público. Um exemplo são as parcerias com personalidades como Rayssa Leal e Rebeca Andrade, figuras que carregam o mesmo espírito leve, doce e autêntico da marca. "O consumidor enxerga essas conexões genuínas e o quão entrosados estão os perfis dessas pessoas com os atributos que valorizamos como empresa", afirma Jaqueline Hartmann, gerente de marketing da Docile.
Mais do que campanhas com rostos conhecidos, a Docile também tem se posicionado com consistência em espaços onde seu público está. De festivais como o Planeta Atlântida ao patrocínio do Time Brasil, a empresa cria experiências memoráveis, com presença afetiva e coerente em múltiplos canais. "Temos constância, propósito e uma mensagem verdadeira que tem muita conexão com o público", completa Jaqueline. Em um cenário de excesso de estímulos, esse tipo de presença constante e verdadeira se torna o verdadeiro diferencial.
Antes de personalizar, é preciso ouvir
Personalizar não é apenas sugerir produtos com base em históricos de compra, adaptar mensagens para grupos distintos ou criar experiências segmentadas. É a escuta que transforma a coleta de dados em algo com propósito e permite às marcas entenderem o que de fato importa para cada consumidor. Grinberg acredita que o primeiro passo para personalizar de verdade é ser gentil. Não no sentido polido da palavra, mas no sentido profundo de tratar o consumidor como alguém que carrega histórias, medos, dilemas e desejos. "Ser gentil não é oferecer um produto de graça, mas ser genuíno. Em termos práticos, significa colocar o cliente no centro, mas não como uma persona genérica ou um número na base de dados", alerta.
Ele ainda defende que a personalização só se torna um diferencial competitivo quando transcende o algoritmo. E isso significa sair da lógica das interações programadas para entrar no campo das experiências memoráveis, que fazem com que o consumidor se sinta visto e, melhor ainda, respeitado. "A personalização verdadeira é aquela que gera vínculo, não só transação. E isso só acontece quando ela é sustentada por uma cultura de atenção", afirma.
É esse tipo de atenção — que começa dentro da cultura organizacional e transborda para a experiência do consumidor — que a Reserva tem buscado com o projeto Faça Você, plataforma que permite aos clientes customizarem camisetas, bonés, moletons e outros produtos. Mais do que uma estratégia estética, o modelo propõe a co-criação como gesto de escuta: o cliente deixa de ser apenas receptor de uma oferta e passa a ocupar o papel de autor.
Segundo Pedro Cardoso, diretor digital de novos negócios da Reserva, "a personalização não é apenas estética, mas uma extensão da liberdade de expressão individual". E essa liberdade se conecta também a propósito: a cada peça customizada, a marca viabiliza refeições por meio da ONG Banco de Alimentos, unindo individualidade e impacto coletivo.
Quando tudo é sobre você, talvez nada seja
O marketing sempre flertou com a ideia de entender o consumidor profundamente, mas, nos últimos anos, essa obsessão por entregar exatamente o que ele quer, no momento em que ele deseja, tem gerado uma distorção. Ao tentar ser excessivamente eficiente, a personalização pode se tornar entediante. O feed começa a mostrar mais do mesmo. As sugestões de compra reforçam hábitos antigos. A marca, ao tentar agradar, se acomoda — e acomoda o consumidor junto. Afinal, quando tudo é moldado às preferências de alguém, até a surpresa vira previsibilidade. Esse é um dos riscos da personalização quando ela se apoia exclusivamente em algoritmos e padrões comportamentais passados: ela perde o frescor da descoberta, o impacto do inesperado e, com o tempo, a própria relevância.
Para o professor e colunista de AMANHÃ André D'Angelo, essa é uma armadilha real. "A partir de determinado ponto, como qualquer tentativa de aprimoramento técnico, a personalização pode se tornar contraproducente. Seja para quem a propõe, seja para quem a recebe. Torna-se antieconômica, simplesmente porque 'um produto para cada preferência' é inviável tecnológica e financeiramente. E talvez do ponto de vista do consumidor também: às vezes, a graça está em descobrir aquilo que se desconhecia a seu próprio respeito."
Esse argumento provoca uma virada sutil, mas essencial: personalizar não significa entregar exatamente o que o cliente quer, mas criar o ambiente certo para que ele descubra o que ainda não sabia que queria. É nesse espaço de abertura, de intuição e surpresa, que as marcas mais memoráveis operam - não apenas como solucionadoras de demandas explícitas, mas como catalisadoras de desejos latentes.
A discussão, então, se amplia. O papel da marca é apenas atender às expectativas ou também provocá-las? A resposta talvez esteja na alternância entre os dois movimentos. De um lado, é preciso ouvir e compreender o consumidor, antecipar necessidades, ser preciso. De outro, é necessário ousar, propor, criar narrativas que escapem do previsível. É nesse vai e vem entre a expectativa e o encantamento que se constrói valor.
D'Angelo aponta ainda uma questão importante sobre os limites da tecnologia: "Sempre há uma limitação para aquilo que a 'máquina' pode oferecer. Mas, lembremos, provavelmente este é o recurso mais eficaz que existe hoje para uma personalização em massa, direcionada a um grande mercado e sem intervenção humana." É por isso que o desafio não está apenas na ferramenta, e sim no uso dela. "Personalizar com criatividade é mais difícil do que apenas automatizar", completa.
Por fim, há uma dimensão coletiva que precisa ser resgatada. Mesmo em tempos de hiperpersonalização, ninguém é uma ilha. "Todo indivíduo faz parte de um grupo. À exceção de sua codificação genética, todos os demais traços observados, sejam físicos, comportamentais ou simbólicos, guardam semelhança com o de outras pessoas", diz D'Angelo. O segredo, como afirmava Washington Olivetto, está em falar com muitas pessoas como se estivesse falando com uma só. Afinal, em um mundo saturado de segmentações, a personalização eficaz não é a que entrega o que você quer, mas a que faz você sentir que aquilo era o que você precisava, mesmo sem saber. E isso, nem sempre, é possível calcular com dados.
Tecnologia que amplia o humano
A personalização via inteligência artificial pode ser uma grande aliada do marketing — ou uma armadilha. Tudo depende da intenção com que a tecnologia é aplicada. Foi com essa provocação que a especialista em inovação disruptiva Mônica Magalhães, fundadora da agência Disrupta, abriu sua fala durante o Gerdau Innovation Day, em abril. "Se estou apoiando toda essa inteligência artificial para que as pessoas aprendam mais, se tornem mais inteligentes, ótimo. Mas, se estou usando isso apenas para tirar mais delas, esgotá-las, espremer sua produtividade, então algo está fora de lugar", refletiu. Ela defende que, mais do que acelerar processos, a IA deve servir para ampliar possibilidades humanas, e que estamos diante de uma escolha: seguir em modo automático ou adotar o que ela chama de mindset de emergência, que usa a tecnologia para expandir consciência, e não apenas performance.
Essa mudança de perspectiva é visível em marcas que estão redesenhando seus pontos de contato com o consumidor. Um exemplo emblemático vem do setor bancário: o Santander, que tem investido em uma transformação profunda na forma de se relacionar com o público, tanto nos canais digitais quanto nos espaços físicos. Em vez de agências convencionais, a instituição aposta em um novo modelo chamado Work/Café — locais onde o atendimento bancário se mistura a experiências como coworkings, cafeterias e salas para reuniões e mentorias.
"Estamos vivendo a era pós-banco, em que o espaço físico passa a ser dedicado a criar conexões", explica Robson Rezende, diretor da rede do Santander no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Com as transações cotidianas resolvidas pelo aplicativo, o momento de ir até uma agência se torna raro — e, por isso mesmo, valioso. É nesse ambiente descomprimido que o banco oferece atendimento consultivo e personalizado, em ocasiões que marcam a vida do cliente: uma compra de imóvel, uma decisão de investimento ou uma transação complexa.
O diferencial, no entanto, não está apenas na ambientação. O Santander também aposta na integração real de canais, com suporte tecnológico para garantir continuidade e contexto. "Hoje, o cliente pode ser atendido em qualquer loja. Ele também pode procurar qualquer um dos três canais, agência, digital ou call center, e ter suas questões resolvidas. O atendente de um canal precisa saber o que foi feito no outro, e para isso usamos a tecnologia como base dessa jornada integrada", explica Rezende. Mais do que entregar soluções personalizadas, o banco aposta em dar poder de escolha ao cliente. Não importa a geração: o que importa é permitir que cada pessoa defina como quer ser atendida, em que ritmo, por qual meio e com qual profundidade de relação. Essa autonomia é, por si só, uma forma de personalização. Olhando para o futuro, o Santander projeta lojas menores, mais tecnológicas e estrategicamente posicionadas. Mas, acima de tudo, vê o espaço físico como uma plataforma de vínculo — um local onde a marca se faz presente de forma humana, mesmo em tempos digitais. "Com o aumento do uso de canais digitais, as visitas às nossas agências estão se tornando raras e, por isso, oportunidades especiais para fortalecer relacionamentos", conclui Rezende.
O fim da navegação, o começo da mediação
Durante muito tempo, navegar foi o verbo dominante na experiência digital. O consumidor procurava, comparava, clicava, decidia. Sites, motores de busca e aplicativos eram intermediários entre o desejo e a oferta. Mas o que emerge agora é um novo paradigma, onde agentes inteligentes assumem a função de buscar, negociar e decidir por nós. A jornada do consumidor passa a ser conduzida por mediações automatizadas, que colocam os algoritmos no centro da relação entre marcas e pessoas.
Essa transição é o eixo central do artigo e da entrevista concedida por Marcos Facó, diretor de comunicação e marketing da FGV, que propõe uma reflexão profunda sobre a chamada "revolução das interações automatizadas". Para ele, estamos saindo da era da navegação ativa e entrando em uma nova fase, na qual a inteligência artificial generativa transforma a experiência de consumo em algo delegado, mediado por agentes que interagem com sistemas de oferta e realizam transações de forma autônoma, com base em critérios personalizados.
Nesse futuro próximo, o consumidor não perderá tempo navegando por sites de passagens, cursos ou produtos. Bastará acionar seu agente de IA com instruções simples, como "quero viajar para um lugar com natureza, entre tal e tal data, gastando até R$ 5 mil". O agente buscará, avaliará e negociará por ele. É a personalização elevada ao seu nível mais automatizado. Mas o diferencial não estará apenas na eficiência: estará na confiança.
Segundo Facó, "os consumidores buscarão garantias de que suas preferências são respeitadas e que não há viés comercial na priorização de opções". Ou seja, mais do que entregar resultados personalizados, as marcas precisarão ser transparentes sobre como esses resultados foram gerados. Isso exige uma nova ética digital, e também um novo modelo de posicionamento. E também entra em cena o conceito de AEO (Agent Engine Optimization): se antes as empresas disputavam espaço nos motores de busca, agora precisarão garantir que suas ofertas conversem diretamente com os agentes autônomos.
Nesse novo cenário, o conteúdo das marcas precisa ser inteligível para sistemas, não apenas para humanos. Mais do que palavras-chave, importa a clareza das condições comerciais, a confiabilidade das fontes e o histórico de relacionamento. Isso muda radicalmente o jogo da personalização, deslocando o investimento das campanhas convencionais para as estruturas invisíveis que operam por trás dos bastidores. Facó alerta para os riscos dessa nova dinâmica: bolhas algorítmicas, manipulações comerciais, concentração de poder nas mãos de grandes plataformas e opacidade dos sistemas de decisão. Para mitigar esses riscos, ele defende a criação de agentes éticos, interoperabilidade entre plataformas, regulamentação democrática e educação digital para o consumidor.
Na prática, isso significa que a personalização do futuro dependerá menos da persuasão publicitária e mais da preparação técnica. As marcas precisarão criar ambientes amigáveis para os agentes autônomos, com propostas claras, dados bem organizados e regras transparentes. E ao mesmo tempo, precisarão manter sua identidade, seus valores e sua capacidade de gerar desejo — mesmo que a escolha final não seja feita diretamente pelo consumidor. Afinal, personalizar não é dizer "isso é pra você", mas sim fazer com que a pessoa diga: "Isso é sobre mim."
Esse conteúdo é parte integrante da edição 349 de AMANHÃ. Acesse a publicação completa clicando aqui.
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