Doze maneiras de enlouquecer um garçom francês

Longe de ser estudantes em busca de um dinheiro extra, ou atores à espera de uma chance na Broadway – tão comuns em Nova York –, os garçons franceses fazem da atividade uma profissão que exercem com invariável orgulho. Com graus variados de simpatia,...
Doze maneiras de enlouquecer um garçom francês

Longe de ser estudantes em busca de um dinheiro extra, ou atores à espera de uma chance na Broadway – tão comuns em Nova York –, os garçons franceses fazem da atividade uma profissão que exercem com invariável orgulho. Com graus variados de simpatia, certo é que não podemos lhes subestimar a percepção das sutilezas interculturais, mesmo porque poucas classes profissionais estão tão expostas ao bombardeio diário de tantas nacionalidades, cada uma delas com suas idiossincrasias. 

Assim sendo, ao cabo de décadas de observação, acho que já posso me abstrair dos padrões gerais e elencar as 12 situações tipicamente brasileiras que tiram do prumo um garçom francês, especialmente quando se trata de atender uma mesa grande e ruidosa, desinibida e espontânea, capaz de acampar por horas na calçada do Boulevard Saint-Germain, num peditório sem fim de vinhos e petiscos. Conhecidos por seus gastos altos e pequenos caprichos, eis o roteiro prometido sobre o que os tira do sério:

1) O turno do almoço se encera às 14 horas e a equipe se apressa para descansar ou se entregar a outros afazeres. Mas eis que aquela mesa de brasileiros pede, então, mais uma garrafa de vinho a título de "saideira". O garçom atende a contragosto. Mas chegará a hora em que, por mais consideração que tenha pelos comensais loquazes, dirá que a casa está fechada e que a porta da rua está à serventia. É claro que os brasileiros vão se queixar. Em tempo: é de mau gosto puxar uma nota de 20 euros para dobrar o regulamento.

2) O garçom se aproxima da mesa e, examinado o cardápio, as perguntas insólitas perpassam o ar, geralmente em inglês: "O prato é bem servido? Dá para dois?". Ultrajado, ele dirá com olhos semicerrados que o cozinheiro o concebeu para uma pessoa, o que será entendido como a quintessência do humor azedo. Outro clássico brasileiro é perguntar: "Dá para mudar o acompanhamento? Ao invés de "sauce poivre", o senhor traz "sauce moutarde"? Ele então aponta o cardápio e diz: "Não precisa mudar, Monsieur. Basta pedir filé ao molho de mostarda e não filé à pimenta". Mas assim se esvai o gosto por transgredir.

3) Outra pergunta previsível: "O que é que acompanha?" Ora, dirá o garçom, aqui temos a lista dos acompanhamentos possíveis. Originalmente, o prato – peixe, carne, caça – virá solitário, mas fica a critério da mesa definir o que quer de guarnição. Mas se você é bom brasileiro, não se dará por vencido e vai perguntar se ele não pode trazer dois acompanhamentos pela metade ao preço de um. "Que tal trazer metade vagem e metade arroz branco?". O francês suspirará e, rendido, dirá que certamente a cozinha poderá fazer um esforço para atender.

4) Nada é tão brasileiro quanto tentar subverter a ordem do menu. Boa parte dos restaurantes conta com cardápios fixos a preços variados. É evidente que o que custa 38 euros tem ingredientes mais nobres do que o que sai a 26. Mas se você é brasileiro da gema, não hesitará em apontar o mais barato e tentar fazer pequenas alterações: "Eu quero esse menu, mas ao invés de sopa de cebola, traga a de lagosta. E substitua, por favor, a salsicha com repolho por uma coxa de pato". Simples assim, na base do se colar, colou.

5) Outra situação bem típica é a de pedir que se tragam petiscos antes do almoço ou jantar, a título de aperitivo. "Amigo, não dá para trazer uma porção de fritas? Ou melhor, pegue um bom patê de ganso da casa e traga aqui para o meio da mesa com umas torradinhas, certo?". Ora, o rito da missa começa muito mal quando se parte desse jeito. A proposta gastronômica da casa está a ponto de ruir e os comensais das vizinhanças ficarão bastante desconfortáveis. O garçom manobrará para salvar a honra do restaurante.

6) Nada, contudo, é tão brasileiro quanto aquele grupo de mulheres, parecidas com as amigas da ex-primeira dama do Rio de Janeiro, que chegam assoberbadas de compras e, sentando a uma mesinha externa do Deux Magots, ocupam 3 ou 4 cadeirinhas de palha com suas preciosas sacolas Chanel. Como se quisessem dividir sua alegria juvenil, ou delinquente, com meia cidade, abrem os embrulhos para mostrar umas às outras os mimos adquiridos. Os garçons fumegam de ver gente tão espaçosa, de gosto tão previsível e tão inconscientes da balbúrdia que trazem ao ambiente. As cadeiras são para as nádegas, não para pacotes.   

7) Nesses últimos 20 anos, se consolidou no Brasil uma cultura de adoração ao azeite de oliva e ao vinagre balsâmico. Nesse contexto, não é raro que os comensais peçam aos garçons que tragam esses ingredientes em profusão, o que põe em risco o delicado equilíbrio dos pratos que, não raro, resultam de centenas, senão milhares de provas, até que cheguem àquele ponto de cocção, equilíbrio e tempero. O mesmo vale para molhos industriais de tomate que alguns aspergem sobre batatas divinas, e bisnagadas de maionese sobre saladas generosas em ingredientes secos, como damascos e até tâmaras. Ou, por fim, queijo ralado sobre suculentos frutos do mar.

8) Os garçons até que se adaptaram melhor a esse cacoete – a profissão obriga –, mas convenhamos que não é fácil abrir mão da concentração que requer o que se está fazendo e rasgar os cânones básicos da profissão para virar fotógrafo de ocasião, quando não filmador de gente embriagada de voz pastosa. Tudo se agrava quando cada um dos comensais quer ter um registro em sua própria câmara-telefone do congraçamento do grupo, o que pode levar o garçom a tirar duas dezenas de fotos num lapso de 5 torturantes minutos. E ai dele se disser que está excessivamente ocupado para isso. No final, ainda pedem que ele venha posar com a turma. É ou não um calvário?

9) Mas se o grupo é realmente endiabrado e está em seu melhor momento de nostalgia – qualquer período que signifique estar longe do Brasil há mais de 3 dias –, é possível que 2 amigos, anabolizados por 4 garrafas de vinho sorvidas a cru em uma hora, se animem a fazer uma batucada de leve na mesa, como forma de puxar um sambinha de roda ou mesmo uma música de exaltação, tipo "Cidade Maravilhosa" ou, dependendo da época, alguma coisa como "Máscara Negra". Já vi casos em que uma mulher se empolga, levanta os braços e vai querer convidar pessoas de outras mesas para dançar. Já nem falo de marmanjos de guardanapo na cabeça a fazer trenzinhos – um clássico mundial. É um espetáculo.

10) Os garçons ficam também estarrecidos com o grau de intimidade que alguns brasileiros querem soldar no calor de um porre. Depois de ficar ancorado uma tarde toda no terracinho da Brasserie Lipp, ele vai querer criar um laço mais pessoal com seu mais novo amigo francês. Então pode disparar: quanto ele ganha entre salário e gorjetas? Ele vive longe do local de trabalho? Ele tem filhos? Quantas vezes casou? Ele é fiel à sua mulher ou  dá umas escapadas "como todo homem"? Ele não tem planos de morar num país mais quente, longe desse frio aterrador? O pobre garçom revira os olhos, pode até ser tomado de alguma simpatia, mas é difícil manter o foco.

11) Sendo o garçom o amigo imediato, aquele mais à mão, um dos únicos interlocutores com quem o brasileiro se sente à vontade para estabelecer um vínculo pragmático direto, ele parte facilmente do pressuposto de que o novo conhecido é um depositário de dados enciclopédicos sobre seu país. Daí disparar as perguntas que são corriqueiras entre brasileiros: qual é a população daqui? Quanto vocês têm de inflação ao ano? De quanto é o déficit previdenciário do país? Ora, o máximo que se pode almejar é que ele fale de aspectos mais prosaicos da vida: desemprego, moradia e pouco mais do que isso. Ser francês não o obriga a saber sobre demografia, economia ou finanças públicas.

12) Por fim,  o garçom realmente ficará furibundo se, fiel ao modelo nordestino de outras épocas – mas ainda vigente em expoentes de minha geração –, você tentar chamar a atenção do atendente com um sonoro "psiu, psiu". Onomatopeia criada para chamar animais, não necessariamente os de estimação, o desavisado pode se preparar para uma reação irritada e surpreendente. Você dirá que ninguém mais faz isso. Pois bem, garanto que já vi todas as situações alinhadas acima. A depender do contexto, pode ser bastante divertido. De olhar, claro. E, jornal sob o braço, sumir dali e ir bater em outra freguesia.          


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Quarta, 11 Dezembro 2024

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