O grande fosso

Sempre critiquei as empresas por onde passei por não serem mais solidárias ao mundo da pesquisa e da academia. E, na verdade, sempre que esteve a meu alcance, de tudo fiz para mudar esse estado de fato. Mas determinadas horas é mesmo compreensível a ...
O grande fosso

Sempre critiquei as empresas por onde passei por não serem mais solidárias ao mundo da pesquisa e da academia. E, na verdade, sempre que esteve a meu alcance, de tudo fiz para mudar esse estado de fato. Mas determinadas horas é mesmo compreensível a razão de ser de certa cautela em buscar um estreitamento de relações, mormente no terreno das ciências humanas. 

Digo-o à luz de um exemplo simples. Ontem passei o dia no prestigioso "Collège de France", em Paris, onde ouvi pelo menos uns vinte especialistas no chamado mundo árabe. Na maioria franceses e suíços, muitos de origem sírio-libanesa, ali também havia pesquisadores alemães, palestinos, iraquianos, argelinos e egípcios. Tudo, enfim, para compor uma plêiade. 

Na pauta, uma ampla discussão sobre as chamadas "primaveras árabes", denominação genérica para esses surtos de democratização que vez por outra varrem países de baixa tradição nesse terreno, e cujo destaque único parece caber à Tunísia, o único deles que, nos últimos dez anos, abraçou os caminhos vigentes na maioria dos países europeus, seus quase vizinhos. 

O que me chamou a atenção, e que está na base da reflexão que eu lhes trago hoje, é que em momento algum do longo debate que começou às 9 horas e se estendeu até as 19, alguém fez uma referência aguda e detida aos coadjuvantes de todo esse processo: os árabes, ora essa. As pessoas que vivem entre o Marrocos e a Iraque. Quem são eles? Como pensa a rua? 

Ora, os ilustres professores não se pouparam de dizer que em muitos países os padrões da Guerra Fria ainda estão em vigência. Alguns falaram sobre as nefandas "fake news" e outros discorreram sobre a posição das chancelarias ocidentais face à importância geopolítica dos países. Um chegou a insinuar que a Tunísia vem dando certo porque não tem energia, o que é uma tese boa. 

Mas como disse, ninguém explorou a dimensão cultural do homem e da mulher em suas casas. Ora, basta ler a literatura contemporânea desses países, e/ou ver os excelentes filmes de cineastas marroquinos, tunisianos, argelinos e libaneses (por acaso vi um de cada nos últimos 30 dias) para entender que a realidade ainda não aceita o que chamamos de padrões ocidentais de cultura.  

Assim sendo, quer Trump e Putim queiram ou não, a imensa maioria dessas populações – muitas vezes iletradas e afeitas a um modo de vida estacionário, cuja única interface com a dinâmica do mundo é a posse de um celular, que só alastra e dá velocidade a seu acervo de convicções – reage mal à quebra da tradição, onde quer que ela se manifeste. 

Nenhum pesquisador falou sobre a indústria do medo dos estados policiais. Do machismo descarado que prevalece na maioria das culturas (aqui sim, a questão é endêmica e justifica a bandeira isolada). Da religiosidade que, no caso do Islã, traz à vida cotidiana determinantes cruciais que impedem a eclosão de um "aggiornamento" do estilo de vida. Da baixa cultura de planejamento, caudatária do fatalismo. Do desemprego acachapante. 

Em suma, se espremermos todo o cabedal de conhecimento daquelas ilustres cabeças pensantes, teríamos como resultado uma contribuição sofrível para, por exemplo, o desenho de uma estratégia empresarial de qualquer ordem. Dois ou três "traders", ou um executivo bem rodado no mundo árabe e versado na língua, teria tanto a dar quanto a soma de todas as falas dos acadêmicos – muitas delas tediosas, preciosas e anódinas.

Viva a iniciativa privada, a grande catalizadora do saber à disposição do mundo. 

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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