Rudimentos de aviação IV
Eis que chegamos hoje à quarta parte de nossa série sobre a aviação comercial, vista sob a ótica de um leigo em aspectos técnicos, embora, como passageiro, até que bem rodado de mundo. Quem perdeu os três capítulos anteriores, que totalizaram seis itens, os achará facilmente pelos links no corpo do texto. Hoje trataremos do serviço de bordo e do mais que gravita em torno dele. Como de praxe, alternarei os cenários. Portanto, tanto podemos falar da aviação brasileira quanto da internacional. Vamos, portanto, seguir viagem.
VII - Serviço de bordo
A prestigiosa seção Radar, da revista "Veja", uma das cinco maiores do mundo em circulação, registrou esta semana, em seu número 2505, a seguinte informação: "Doce Vida - Pedro Parente tem trabalhado bastante, mas a presidência da Petrobras também proporciona momentos de puro deleite. Na semana passada, ele foi a Nova York para um evento. Viajou de primeira classe e usou passaporte oficial. Filas? Só para os mortais". Quem assina é Mauricio Lima, um jornalista sorridente e grisalho cuja foto encabeça a página 45. O que se pode inferir daqui? Muita coisa, ora.
O que sobressai na notinha é a força do imaginário, penso eu. Ora, um profissional que tem acesso a todas as fontes de informação do país, e cujo espaço é tão venerado quanto temido, mostra aqui um lado cândido, quase ingênuo, ao se referir a um beneficio tão irrelevante. Isso porque, convenhamos, esta é uma benesse totalmente desproporcional ao pesadíssimo fardo de presidir uma empresa que caiu dos píncaros da glória ao inferno mais escuro. O que pode representar para Pedro Parente um embarque prioritário e uma poltrona que jamais vai se comparar à sua cama onde, ao que me consta, jamais dormiu de terno?
Vamos adiante: o que significa uma taça de Dom Pérignon, diante da responsabilidade colossal de livrar a empresa de processos de bilhões e bilhões de dólares em cortes americanas? Nada, repito. Mas, para o jornalista, a primeira classe, a assim denominada "First", é o estuário de fantasias que exorbitam a sociedade do espetáculo. Voar junto ao nariz do avião é, para ele, a quintessência do luxo e do privilégio. Ele esquece, na verdade, que a imensa maioria dos ocupantes desse espaço, tem tanto com que se preocupar – como é o caso de Parente – que mal toca na comida e, em geral, dificilmente vai além de uma taça de vinho.
Isso dito, não há como dissociar o serviço de bordo das classes, tema que galvaniza os observadores do cenário do glamour. A bem da mais pura verdade, a primeira classe começa a desaparecer da imensa maioria das rotas comerciais do mundo. Tirando as companhias que se destacam pelo atendimento impecável aos caprichos de uma clientela abonada, certo é que o uso intensivo de aviões privados – você já não precisa ser um plutocrata russo para se dar a esse luxo –, reduz a primeira classe a um esconderijo de eventuais estrelas do show business, futebolistas, presidentes de multinacionais e uma ou outra autoridade de governo em crise.
Além da privacidade, aspecto capital para quem faz essa opção, boa parte das amenidades será solenemente ignorada por uma gente que do voo só espera mesmo chegar em forma ao destino. Sobre o quanto ela pode ser inexpressiva para quem a ela teria acesso natural, vejamos o que diz o empresário Abilio Diniz em seu novo livro, "Novos caminhos, novas escolhas", na página 68: "Quando uso meu avião, às vezes mando uma tripulação a mais para poder voltar poucas horas depois". Ou seja, as passagens, diárias, honorários e estadias dos tripulantes por certo que perfariam muitas vezes o valor da mítica primeira classe. O que diria disso o jovem jornalista de Radar? Falta muitas vezes aos articulistas senso de proporção. Para muita gente, caviar e "foie gras" não valem uma boa noite de sono.
Certo é que o serviço de bordo começa já a ficar bastante aceitável na classe dita executiva, genericamente chamada de "business". Cada dia mais espaçosa na configuração dos voos de longo curso, as poltronas ficam situadas entre a primeira e a econômica, também dita "coach" nos Estados Unidos, e, em certos aviões, pode ocupar um andar inteiro, como é o caso do "deck" do Airbus 800, o maior avião comercial em uso na atualidade.
Dispensável dizer que integra o pacote das classes preferenciais os embarques e desembarques prioritários, a chegada das bagagens e um cardápio de que geralmente consta uma boa escolha de vinhos, uma gastronomia que pode ser bastante esmerada e uma poltrona que acomoda até os mais corpulentos com bastante conforto. Em alguns casos, as aeromoças são proibidas de comer alho ou cebola 24 horas antes de viajar para evitar o hálito azedo ao falar com seus privilegiados passageiros, a quem se dirigem pelo nome. É importante ressaltar que a imensa maioria das empresas aéreas disporá de um "lounge" para esses passageiros. E, em alguns casos, eles são tão confortáveis e bem equipados, que um jantar já é servido em terra, o que permite que os passageiros possam embarcar e adormecer em seguida para chegar em forma ao destino.
Falemos, por fim, da classe econômica, a menos rentável para as companhias aéreas que, em muitos casos, tentam criar uma classe superior, dita "premium" – ou "voyageur" na Air France –, em que, com o pagamento de um suplemento, o passageiro pode ocupar as seis primeiras filas do pelotão mais barato. Ora, muitas empresas têm excelente classe econômica. Ela só configura um castigo para aqueles que sonham acordados com o que deve estar se passando por trás das cortinas de quem está sentado mais à frente, o que traduz bem a alma do ser humano. É claro que a comida pode ser bastante sofrível, mas sequer a limitação de bebidas é de praxe nas boas companhias europeias ou asiáticas. A programação de entretenimento é cada da mais similar entre todas as classes, salvo pelo tamanho das telas e pela qualidade dos fones de ouvido.
Nesse contexto, talvez o que mais incomode na classe econômica seja a balburdia que se instaura. Especialmente quando estamos viajando por países de cultura muito gregária como é o caso da brasileira. A excitação tanto da chegada quanto da partida pode desencadear reações de amistosidade excessiva, troca de confidências em voz alta entre pessoas que mal se conhecem; um corre-corre de crianças que encaram tudo aquilo como um playground e a firme convicção de que ir ao banheiro várias vezes é um programa aceitável, o que congestiona os corredores.
Por fim, não vivi os tempos do Constellation em que as aeromoças eram invariavelmente belas e preparavam pratos elaborados a bordo, como estrogonofe e até crepes flambadas, ditas "Suzette", o que, convenhamos, era uma verdadeira temeridade para a segurança. O máximo que lembro de extravagâncias do gênero era a feijoada que a extinta Transbrasil servia nos voos dos sábados e um imenso bolo recheado com sorvete que a Air France servia na primeira classe. Aliás, nos tempos em que viajava entre os coroados da primeira fila – uma prerrogativa quase obrigatória para a posição que ocupava –, me deleitava com um serviço de bordo tido como dos melhores do mundo. Era o privilégio com que eram agraciados os que viajavam de São Paulo para Tóquio, via Los Angeles, pela extinta Varig. Mas isso foi há muito tempo.
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