Homens da História
Ontem jantava com um amigo numa agradável mansarda georgiana, não longe da sede local do antigo KGB, quando ele me apontou uma mesa ao final do terraço e disse que precisava ir até lá saudar alguém. Pois bem, se tratava de um integrante do antigo gabinete do qual ele fora aliado e militante. Assenti e fiquei observando a coreografia georgiana da troca de cumprimentos. Sorvendo a grandes goles a melhor água mineral do mundo, a Bojormi, acompanhei a cena efusiva e só então atentei para alguns comensais que, visivelmente, deveriam ser seguranças do homem notável. Ao voltar, ele disse: "Paguei um alto preço por ter sido seu aliado. Mas faria tudo de novo porque sei que foi um patriota honesto e um homem de visão. Além de ser um guerreiro intimorato. Será graças às suas políticas que ainda nos integraremos ao Ocidente e seremos uma pedra no sapato dos russos - o que muito nos honra". Vendo que ele se exaltava além do que recomendava uma noite de domingo, mudei de assunto para que ele não revolvesse os capítulos que eu já conhecia e que tanto o tinham ferido. "Fale-me de seus filhos, estou curioso". Pouco a pouco, o sorriso lhe voltou aos lábios. Melhor assim.
A caminho do hotel, vim matutando sobre os caminhos da História e como ela entra nas nossas vidas muitas vezes da forma mais fortuita. No caso ele, fora recrutado na Universidade depois de sobreviver a uma adolescência onde a violência campeava e até crianças levavam armas para a escola para se defender. Era a época do vale-tudo dos anos 1990. Cedo ele entendeu que a Rússia era o grande inimigo e até hoje não digere que o vizinho portentoso lhes tenha subtraído pedaços do território georgiano – no caso a Ossétia do Sul e a Abcázia – pelo simples fato de Tbilissi ter mandado evidências de um "basta" a Moscou. Ademais, aduziu meu amigo, dada a natureza dos negócios ainda hoje vigentes nos antigos países satélites da URSS, é muito difícil se estabelecer nessa arena porque as melhores oportunidades são sempre enfeixadas por oligarcas que, ostensivamente, fazem da força uma moeda de troca e só entendem a linguagem da truculência e da intimidação. Por incrível que pareça, pouco mudou nos últimos 20 anos. "Eu até os entendo. Se eles demonstrarem alguma fraqueza, sabem que fatalmente os concorrentes os reduzirão a nada. Isso aqui é um Oriente não-taoista. Vale a força dos músculos".
Já no meu quarto, admirando ao longe a imponente torre de televisão, me ocorreu uma reflexão sobre o que vira na véspera em Yerevan, na bela capital da Armênia. Isso porque fora literalmente agraciado com uma visita do Papa à pequenina nação do sul do Cáucaso. Ali vira uma liderança firme, de palavras contundentes, mas sem nenhum traço de soberba. Francisco (foto), o antigo cardeal Bergoglio, nosso irmão portenho, se mostra a cada dia que passa mais surpreendente. Fala com firmeza do meio ambiente, dos direitos humanos e, contrariamente à postura imperial do patriarca armênio que o recepcionava, se mostrou sempre afetuoso e sorridente para com as pessoas que, como eu, lotavam a Praça da República. Eis um homem iluminado, pensei. Com essa cara de peninsular com quem se poderia tomar um café num balcão de bar em qualquer parte da Itália, ele não hesitou em chamar a chacina perpetrada pelo Império Otomano um século atrás contra os armênios de Genocídio – escandindo todas as letras dessa palavra terrível. Em Ankara, a terra deve ter tremido diante do que a Turquia considera um insulto. Mas contra fatos não há argumentos e o Papa emocionou milhares de pessoas que pareciam esperar por esse momento há décadas.
Saindo do âmbito de figuras de relevância planetária, fiquei aliviado com a matéria publicada no "Jornal do Commercio", de Recife, sobre a longa trajetória política do ex-vice-presidente da República, governador e senador Marco Antonio Maciel. Acometido de uma enfermidade demencial que o desconecta da realidade em volta, caminha com dignidade para o fim de uma vida profícua em que tudo fez para que o Brasil trilhasse uma rota segura em direção à democracia e as boas práticas púbicas. Por várias vezes ocupou a Presidência da República, sempre com discrição e seriedade. Conheço-a há mais de trinta anos. Não obstante nunca tenha votado nele – em Pernambuco, durante muito tempo, as afiliações políticas de família não se misturavam –, há de se reconhecer os méritos de uma voz discreta e incansável. Que emanou, até recentemente, de um homem frugal e clarividente. Antes de tudo, movido a boas causas - essas que frequentemente não vemos, mas que integram a política no que ela tem de mais nobre. Visto por alguns como uma liderança anódina da direita cristã, na verdade defendeu com largueza seus pontos de vista e inspirou dezenas de seguidores de proa que hoje se identificam como "macielistas".
Isso dito, constato que vira e mexe estou eu voltando ao tema da liderança neste espaço. Mas não há formação intercultural que não lhe atribua um peso determinante. Dessa forma, é importante entender que não há um padrão universal que a consagre como regra fixa. O politico georgiano a quem depois fui apresentado encarna uma forma de resistente ao colosso de um vizinho que, ao menor sinal de fraqueza, tentaria fazer valer sua visão de mundo. Já a perspectiva do Papa Francisco, eivada não só de virtude mas de estadismo, alertou para a necessidade de se celebrar uma paz duradoura no Karabagh, fronteira da Armênia com o Azerbaijão, entre os temas já aludidos acima. O político pernambucano, por outro lado, que se encaminha rumo a uma viagem sem volta, mostra que a coerência será sempre um valor apreciado, independentemente das correntes que abracemos. Nunca se ouviu ele fazer grandes discursos nem sucumbir a delírios de oratória. Mas a seriedade com que levava sua missão era inquestionável. Esses três perfis – o guerreiro, o estadista e o articulador paciente e respeitoso – são identificáveis em todas as culturas. Saibamos identificá-los para trabalhar melhor e viver os encantos da diferença.
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