Estratégia e tormento: a dor de uma recordação

Dia desses, meu amigo Lázaro Vilicic dizia uma coisa interessante sobre a qual continuo a refletir até hoje. Apesar de enfronhado no mundo da consultoria e da venda de ideias há alguns anos, o cacoete de ex-CEO de empresa grande nunca me abandonou de...
Estratégia e tormento: a dor de uma recordação

Dia desses, meu amigo Lázaro Vilicic dizia uma coisa interessante sobre a qual continuo a refletir até hoje. Apesar de enfronhado no mundo da consultoria e da venda de ideias há alguns anos, o cacoete de ex-CEO de empresa grande nunca me abandonou de vez. De sorte que não é raro que brinde alguns de meus clientes com incursões nem sempre pedidas à estratégia empresarial, o que pode levá-los a ter reações de alguma perplexidade. Isso por julgar minha atitude desinibida, uma deliberada invasão de feudos de poder. O que importa? É de minha natureza não calar sobre o que pode me parecer óbvio e promissor. Foi sobre isso que pensava ao atravessar de Buquebus as águas frias e plácidas do rio da Prata entre Buenos Aires e Colônia de Sacramento (foto), no Uruguai.

Tal recorrência se deve ao fato de que quando estive aqui pela última vez, vivi uma situação que tinha tudo a ver com o enunciado acima. Pois bem, nessa época, no começo do milênio, tinha entre meus clientes uma fiação de acetato da Catalunha. Conquanto eles fizessem um trabalho tecnicamente impecável, o bom nível fabril era toscamente acompanhado pela cosmovisão da alta gerência. Pouco à vontade no mundo, os dirigentes tinham nascido para servir a Espanha, ou seja, a Andaluzia, o País Basco, a Galícia e o cinturão industrial de Barcelona. Com o tempo, chegaram à França e, afinal, foram descobertos pelos alemães. O entusiasmo crescente pela exportação não se fez acompanhar por uma evolução de mentalidade que lhes permitisse ousar. Foi então que chegou minha vez de descobri-los e propor um trabalho que se revelou muito profícuo. 

Nesse contexto, com poucos anos de cooperação, tentei dissuadi-los de proceder a uma ampliação da fábrica em favor de uma cara linha de poliamida que, no entender deles, faria bom par com os fios de acetato tintos em massa que então produziam. Meu argumento era simples: por que fazer investimentos de retorno duvidoso numa Europa sabidamente cara quando, com uma fração daquela soma, eles poderiam adquirir uma indústria aqui em Colônia de Sacramento que, recém-hibernada, lhes daria acesso privilegiado ao Mercosul para onde vinham vendendo não menos que 35% da produção? Ora, esse movimento poderia catapultá-los facilmente para ter aqui –especialmente no Brasil – um faturamento excepcional já que cairiam por terra os impostos de importação. 

Ademais, o governo uruguaio estava disposto o ofertar um excelente pacote de benefícios. Permitindo, inclusive, que fosse celebrado um acordo trabalhista com os operários que estavam ansiosos pela reabertura da unidade. Tudo isso foi vazado em documento ilustrado com fotografias e escrito por um ex-executivo do ramo que detinha as mais altas qualificações técnicas para asseverar que estávamos diante de uma oportunidade inaudita. Trazer dois ou três engenheiros de Barcelona para viver na aprazível cidade não era problema e passei semanas contando as horas para ir até lá e fazer uma sustentação oral de minha posição. Por mais que estivesse navegando por águas que cabiam à alta direção da empresa, não me apequenei. Onde já se viu desprezar uma boa ideia? Pois foi o que aconteceu. Agradeceram os préstimos e arquivaram o processo, mal tendo-o examinado. Anos depois, a aventura da poliamida os faria beijar a lona e pedir recuperação judicial. 

Pensando bem, não fora a primeira vez que tamanha desdita me acometia. Isso porque também já saíra como voto vencido na sequência da queda do Muro de Berlim. Naqueles anos, apareceu uma oportunidade de ouro para adquirir uma unidade de diluição de produtos químicos perto de Chemnitz, antiga DDR. Lá fui eu conhecer a fábrica e falar com os antigos proprietários que, acionados pelo organismo de privatizações, queriam conhecer os planos de alguns dos candidatos a adquirir por uma pechincha uma área enorme, fadada a rápida valorização. Ora, com o deslocamento da fronteira europeia para o Leste, aquela localização era abençoada. Mesmo porque tínhamos enorme quantidade de fornecedores de diluentes num raio de 500 quilômetros da nova fábrica. Com a aquisição, nosso produto seria "Made in Europe", devido à agregação de valor local.  Com isso, dormiríamos tranquilos, sem medo de investigações de "dumping". 

Pois bem, por uma questão em todo semelhante ao provincianismo dos catalães e à falta de embocadura para ler o mundo com clarividência, a oportunidade foi esnobada e foram nossos concorrentes locais que abiscoitaram as instalações. Anos depois, conversando com o principal dirigente alemão do ramo, ele me segredou: "Agradecemos todo dia que seus pares não tenham se animado a comprar aquela fábrica, Herr Dourado. Se o tivessem feito, como a todos parecia que ia acontecer, vocês teriam se tornado os lideres incontestes do segmento no mundo. E meia dúzia de fábricas periféricas da Europa poderiam ter fechado as portas. De qualquer forma, conte com nossa admiração pela sua visão. Naquele momento, até nós alemães estávamos com a percepção obliterada pela velocidade dos acontecimentos". O que Herr Bodemaier não sabia era que eu prescindia dos elogios póstumos. Em ambos os casos, eu sofri enormemente por estar um pouco à frente de meu tempo. Mas é para isso que servem consultores. A frustração integra o pacote.    

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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