África negra e culpa branca

Não há a menor dúvida de que o colonialismo europeu gerou sérias disfunções de ordem psíquica na África, ademais das econômicas. Muito mais do que sedimentar complexos atávicos de inferioridade e de promover uma máquina bem azeitada de exploração de ...
África negra e culpa branca

Não há a menor dúvida de que o colonialismo europeu gerou sérias disfunções de ordem psíquica na África, ademais das econômicas. Muito mais do que sedimentar complexos atávicos de inferioridade e de promover uma máquina bem azeitada de exploração de riquezas às expensas de muitas vidas, também deixou uma herança nefasta num plano tão prático quanto obscuro. Isso porque, quando da libertação do jugo colonial, os africanos queriam repetir os mesmos padrões de representatividade e status a que se tinham acostumado a ver no mundo nos brancos. Nesse contexto, se um burocrata borra-botas inglês tinha direito a morar numa bela casa com jardim e piscina diante do azul do Índico, ademais de viver cercado por criados subservientes e afáveis, ora, ele, o novo dirigente negro, também se via investido da mesma prerrogativa. Se o usurpador podia, por que não o local, lídimo representante da parte libertada? 

Dessa forma, um simples diretor de assuntos cívicos de um ministério obscuro, criado sob medida para sua conveniência, se arvorava de grande autoridade e assim era visto por todos os amigos e familiares. Ora, no delicado contexto africano de tessitura de grande família, eis que logo após a nomeação do novo mandatário, apareciam dezenas de parentes vindos de todas as partes do país. Isso porque é de se esperar que o novo poderoso possa – e deva – ajudá-los a se colocar na vida, sob pena de ser extremamente mal visto por estes e pela sociedade. Numa extrapolação dessa aliança, também era de se esperar até mesmo que a parentada toda acampasse nas dependências do novo domicílio. E, dessa forma, devido a laços tribais que antecediam em muito o traçado de fronteiras arbitrário e temerário do colonizador, se criava uma espécie de nepotismo natural que, como sabemos, costuma estar na raiz mesma do desmando, do patrimonialismo e do favorecimento, tão comuns à complexa paisagem humana do grande Continente e demais filiais de atraso e pobreza crônica.       

Não se pode negar, por outro lado, que outros fatores de ordem histórica e geográfica, e logo geopolítica, contribuíram para que a África mergulhasse num longo ciclo de subdesenvolvimento. Ademais do gigantismo continental e do traçado dos grandes rios – pouco favoráveis à integração, logo ao abrandamento das diferenças atávicas que se perpetuaram ao longo dos anos, gerando ódios profundos –, largas faixas desérticas ao norte de florestas indevassáveis dificultaram o desenvolvimento sistemático do comércio e favoreceram, mais tarde, a exploração das potências que chegaram equipadas para traçar estradas do interior em direção à costa, o que tipifica a intenção inequívoca de se retirar riquezas e destiná-las ao progresso do colonizador, ativando uma atividade comercial e mercantil que praticamente não existia entre os nativos. A enorme diversidade cultural, linguística e religiosa só facilitou a pilhagem. As doenças também impuseram uma fatura salgada.  

Se boa parte do mundo ocidental pode, a justo título, se arvorar de uma parcela de culpa vis-à-vis a grande catástrofe que foi a escravidão humana e o tráfico de escravos, não é menos verdade que se constata em alguns países uma visão reducionista de um problema tão complexo. Nesse contexto, não é raro que vejamos jovens das Américas e da Europa, mas também caudatários das ideologias de libertação dos aos 1960 e 1970, se inculparem acriticamente por todas as mazelas que se abateram sobre a África. Se é presunçoso, injusto e leviano dizer que a ocupação colonial potencializou as riquezas latentes ou disponíveis do país ocupado – como fazem frequentemente os portugueses ao falar do que foi sua presença em Angola, edulcorando-a como se tivesse assinalado a verdadeira era dourada do país atlântico –, parece igualmente descabido que outro tanto de sexagenários europeus se arvorem de culpados exclusivos das dificuldades de inserção dos africanos no chamado mundo ocidental. 

Quando muitos dizem que a islamização crescente de algumas partes do Continente, não raro abraçando as versões mais furibundas da sharia, a Lei Islâmica, nada mais é do que uma reação desesperada à política de terra arrasada europeia e à dificuldade dos desenvolvidos em acolhê-los e inseri-los em suas sociedades de afluência, é o caso de se perguntar: por quanto tempo ainda essa tese tão virtuosa quanto piegas prevalecerá? Quem acompanhou a vida europeia dos últimos 40 anos, por certo que testemunhou uma elevação importante do nível de vida dos afrodescendentes que se instalaram nessa pontinha do continente eurasiano. Se mais não foi feito, isso se deve a que dilemas e valores geracionais dificultaram a inserção dos mais jovens, fenômeno que varreu fartas camadas populacionais, independentemente de origens étnicas, a começar por brancos e magrebianos. O que não se pode esquecer é que colocar de pé a equação do desenvolvimento será sempre um desafio de monta. A começar por fazê-lo na África, até mesmo pelas razões já apontadas.

Para finalizar essa reflexão, é o caso de nos perguntarmos a que ponto a moral cristã e a tendência à culpabilização não agravam a leitura desse fenômeno, lhe conferindo uma dimensão quase narcisista. Narcisista porque da mesma forma que muitos de seus ancestrais brancos acreditaram que traziam em si uma missão civilizadora, é igualmente presunçoso achar que os africanos são desprovidos de anticorpos para triar o que lhes convém ou não. Nesse contexto, os próprios africanos reconhecem a complexidade do dilema e o simplismo de algumas visões. Bem diferente deverá ser a reação chinesa no futuro ao que hoje está em curso na África. Etnocêntricos de viés predador, é quase certo que essa pitada de código cristão não os levará mais tarde a se culpabilizar do que fizeram ou deixaram de fazer nesses primeiros anos do novo milênio. Sendo essa apenas uma das inúmeras pautas que perpassam o noticiário, tenho a recomendar o filme belga "Os cavaleiros brancos" (foto), uma das reflexões mais marcantes que vi ultimamente sobre o tema. 

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Quinta, 21 Novembro 2024

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