A tragédia brasileira

O que vou contar deve ter acontecido por volta da primeira metade dos anos 1990. Estando eu no Recife para visitar familiares, me sugeriram que fôssemos passar uns dias num resort do litoral sul, tido como um dos mais belos do país. Efetivamente, a p...
A tragédia brasileira

O que vou contar deve ter acontecido por volta da primeira metade dos anos 1990. Estando eu no Recife para visitar familiares, me sugeriram que fôssemos passar uns dias num resort do litoral sul, tido como um dos mais belos do país. Efetivamente, a praia era magnífica e as paisagens em nada deviam às do Sudeste da Ásia ou do Caribe. Quanto ao hotel em si, a decoração era irreparável e tudo estava ambientado para que o hóspede se sentisse no paraíso. Diante de si, o Atlântico. Nas cercanias, em terra, canaviais a perder de vista a abraçar os arquipélagos de coqueiros verdejantes. Tudo estaria perfeito se não fosse a qualificação da mão de obra.

Ora, todos sabemos que nosso povo é o que temos de melhor. E é verdade que ele ali se manifestava com toda a brejeirice e alegria. O estoque de boa vontade era imenso da parte de cozinheiros, garçons, copeiros e arrumadeiras. Todos tinham uma palavra gentil e um sorriso estampado. Mas era nítido que eram carentes de um treinamento mais apurado. Basta dizer que cada vez que se fazia um pedido no bar da piscina, lá tinha o garçom que preencher uma comanda, e essa tinha que ser rubricada pelo hóspede. Era excruciante para ambos. Imagine-se o transtorno de assinar uma nota para o suco de laranja, outra para as batatas fritas, outra para a cerveja e assim por diante. 

À medida que as barreiras iam caindo, contudo, os próprios funcionários reconheciam que se sacrificava o conforto do hóspede com tamanho excesso de zelo. E que este se devia às exigências do "patrão" para que os controles estivessem nos trinques – não importando o quanto fossem maçantes –, forma mais efetiva que encontrara para não ser lesado por algum empregado mal-intencionado. Ou seja, ficava em segundo plano a conveniência do hóspede e do funcionário. O flagrante primarismo da gestão era de somenos. Era como se a obsessão patronal fosse não ser roubado. O resto viria a reboque, inclusive o desejo dos turistas de repetir a experiência. Eis um absurdo.   

Mas havia ainda outros fatos que agravavam a precariedade daquela mão de obra claudicante. Finda a temporada de "verão", por volta da Semana Santa, os funcionários eram dispensados até novembro. Assim sendo, voltavam para o canavial e passavam a dormir em casas de taipa. Depois de meses na bolha de sonho e assepsia do hotel, constatavam que o orçamento da semana equivalia ao jantar de um casal em férias. A confusão de valores se instaurava de vez e desaguava, fatalmente, num distúrbio de cognição entre o valor das coisas e o lugar de cada um no mundo. Quando recontratados, na alta temporada, tinham que encarnar novo papel, quase nova "persona".  

O caso acima está datado e provavelmente os empregadores já se deram conta que faziam péssimo negócio ao agir assim. Hoje em dia, as temporadas se prolongam por todo o ano e os mecanismos de reserva permitem uma lotação média satisfatória. Os cursos profissionalizantes por certo que supriram algumas das lacunas da época e, com isso, temos, horizontalmente, uma mão de obra qualificada para atender o básico de nossa demanda agregada, especialmente em épocas de pleno emprego, como aconteceu há poucos anos. A questão é que a regra não é essa. A realidade que o dia a dia nos impõe, é sim a de lutar por melhor produtividade. E é aqui que derrapamos.    

Se já não podemos nos valer de uma praia isolada do Nordeste para tirarmos conclusões mais abrangentes, basta ver o que se passa no espaço urbano. Ontem mesmo, ouvia de um amigo de São Paulo sobre as dificuldades que vem encontrando em lançar uma revista. Quando tem tudo avençado com a redação, eis que surge um problema com o comercial que, por sua vez, não chega a falar a mesma língua que a empresa contratada para relançar a publicação. Ao invés de resolver o problema frontalmente e criar um fio condutor de gestão, todos preferem olhar os relógios, se poupar de dores de cabeça e fazer com que suas férias coincidam com o estouro da bolha, pouco mais adiante. 

Quando o projeto naufragar, e é óbvio que tem tudo para isso, uns acoimarão os outros de omissos e se enredarão em longas discussões para identificar culpados e minimizar o quinhão de responsabilidade de si próprios. Diz outro amigo que isso é próprio da geração Y, um pessoal que tem certa ojeriza ao trabalho sistemático e árido. Ora, todo ele tem de passar por esse crivo e não há como contornar as dores do parto. Consola saber, contudo, que o que não falta é trabalho. Infelizes aqueles que precisam de molduras pré-fixadas para entender o que a vida espera deles e de seu desempenho. Pobres daqueles que só respiram diante de um regramento minucioso de descrição de tarefas.      

Sendo a liderança uma preocupação recorrente desse espaço, não me cansarei de dizer que o modelo anquilosado do emprego tal como existia até poucos anos atrás é prerrogativa de prefeituras de grotões esquecidos. Como acontece no futebol, precisamos de integradores; de verdadeiros gestores e jogadores de meio-campo que saibam tirar a bola da defesa e engendrar um bom ataque. O desafortunado da publicação sintetizou bem o valor que se dá à inércia de cunho quase soviético: "Sabe o que gerente disse? Que se eu pressionasse por planejamento, o time poderia passar a sabotar o projeto". Só pensei nas chamadas insurreições de vestiário que acontecem no futebol, não é? 

Lá, pelo menos, o maior talento que se exige é o dos pés, e não o da cabeça necessariamente. Estamos, pois, no meio de um tremendo black out. Os dirigentes médios brasileiros se ressentem mais do que nunca da formação atabalhoada; do carreirismo; do consumismo; do imediatismo e da letargia própria de uma realidade que apontava, até pouco tempo atrás, para o estuário piscoso do setor público. Esse era a prebenda onde se fazia pouco, se ganhava bem e se passava ao largo das demissões. Na verdade, estaríamos a dar um passo se as pessoas soubessem que ninguém trabalha para ninguém. Trabalha-se, antes de tudo, para si próprio. Não importa quem "assine a carteira". 

Tudo o mais é auto-engano.    

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Quarta, 11 Dezembro 2024

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