O liberalismo ou o protecionismo: quem vencerá?
Poucos são os lugares que recebem de braços abertos o Uber. A América Latina não foi exceção. É raro encontrar países em que o aplicativo não tope com greves e protestos de taxistas e, principalmente, com algum obstáculo legal para iniciar suas atividades. Os mercados europeus foram, provavelmente, os mais beligerantes, embora haja processos legais no mundo todo. A Bélgica é um dos exemplos mais emblemáticos, já que ali, depois de meses de embates, finalmente os tribunais deram razão este ano aos taxistas ao decretar que o aplicativo era ilegal e não podia operar no país. Na Espanha, depois de algumas mudanças em seus serviços, o Uber só está ativo em Madri. Ele não pôde expandir-se para outras cidades devido a dificuldades regulatórias. De fato, quando desembarcou na Espanha, também operava em Barcelona. Contudo, os tribunais decretaram a interrupção dos seus serviços em 2014 e, para evitar a sentença, reformularam suas condições de trabalho, mas com isso a empresa só conseguiu prosseguir funcionando na capital espanhola.
“Como se trata de um modelo disruptivo de atividade que está sujeita a uma autorização administrativa, como é o caso do táxi, na maior parte dos países esse tipo de aplicação enfrenta problemas legais do ponto de vista da concorrência desleal”, explica Alejandro Touriño, professor da Universidade Carlos III e sócio-diretor do escritório em Madri da Ecija, banca de advogados especializados em novas tecnologias. “Na hora de prestar determinados serviços, é preciso respeitar a legislação vigente solicitando, por exemplo, as licenças correspondentes. Caso contrário, incorre-se em um delito de concorrência desleal contra os operadores regulamentados”, explica um especialista. “O argumento usado pelo Uber, porém, é de que se trata de uma plataforma tecnológica que põe em contato condutores e clientes, mas a empresa não oferece, como tal, um serviços de táxi”, argumenta Touriño. O problema é que nem todos os juízes partilham dessa tese e estão obrigando a empresa a fazer algumas concessões em seu modelo ou, na falta disso, que atuem sobre os condutores que usam o aplicativo para oferecer seus serviços.
Também no Reino Unido, onde inicialmente a empresa se estabeleceu de forma pacífica e regulada, têm surgido problemas. Há algumas semanas, o novo prefeito de Londres, Sadiq Khan, anunciou uma série de medidas para proteger o táxi tradicional dos condutores do Uber e de outros aplicativos móveis semelhantes, que terão de passar em um teste de inglês, fazer seguro para todos os passageiros e facilitar o acesso a seus dados, com foto incluída, aos usuários. Além disso, se prosperarem os planos da prefeitura londrina, os motoristas do Uber terão de fazer o mesmo exame, conhecido como The Knowledge, que fazem os taxistas para obter seu alvará e mostrar que conhecem cada canto da capital britânica, por isso os táxis londrinos não têm GPS. Para passar nessa prova, calcula-se que sejam necessários mais de três anos de estudos, o que atrasaria consideravelmente o avanço do Uber na cidade.
Apesar desses obstáculos, o aplicativo norte-americano continua a avançar em sua expansão internacional. Ele já está presente em mais de 500 cidades em todo o mundo e agora decidiu se concentrar na América Latina, onde pretende aumentar significativamente sua presença. Touriño espera um grande sucesso desse tipo de aplicativo baseado na economia colaborativa na região, uma vez que tais plataformas são muito interessantes para resolver problemas endêmicos de algumas sociedades. Com isso concorda Ricardo Pérez, professor de inovação digital e sistemas de informações da Escola de Negócios IE. “Essas plataformas oferecem soluções mais eficientes, principalmente em um mercado em que os próprios clientes buscam eficiência no transporte e no alojamento”, opina ele.
Embora possa parecer que nessa região a economia colaborativa desfrute de melhor enquadramento legal, sobretudo depois da boa acolhida em alguns países como Peru ou Chile, o cenário se revela tão complicado como na Europa. O primeiro contato do Uber foi na Cidade do México, aonde chegou em 2013, embora tenha demorado dois anos para regularizar sua situação. Para poder operar na capital do país, o Uber e outras plataformas similares, com o Cabify, têm de pagar 1,5% do arrecadado em cada viagem destinando-o a um fundo público para a melhoria do setor de táxi local. Além disso, deve ter uma licença e atender a requisitos mínimos de qualidade em relação ao tipo de veículo utilizado.
Posteriormente, a plataforma desembarcou no Chile e no Peru, dois países onde praticamente não enfrentaram obstáculos regulatórios. Além disso, replicando o sucesso das cidades onde presta serviços, há milhares de motoristas na plataforma e uma avalanche de clientes, principalmente em Lima (Peru), onde o serviço de táxi tradicional nunca se destacou por seu bom funcionamento. “Atendendo ao impulso de novos modelos de negócios baseados no uso de tecnologia, Brasil, México, Argentina e Peru são os países que contam com maior número de iniciativas de economia colaborativa”, conta o professor da Escola de Negócios. Daí que não seja de estranhar que o Uber tenha conseguido conquistar esses mercados, com exceção da Argentina, onde a justiça bloqueou, por enquanto, o serviço, depois dos protestos e demandas dos taxistas.
Contudo, isso não quer dizer que o caminho esteja livre de obstáculos nas demais jurisdições. No Brasil, por exemplo, foi preciso esperar até a resolução, este ano, de um conflito legal em que, finalmente, o juiz deu razão à empresa, permitindo-lhe operar no país, embora o serviço não esteja livre de restrições. Em São Paulo, criou-se um modelo muito similar ao da Cidade do México, já que a empresa deverá pagar um imposto municipal em função da quilometragem rodada. Pelo menos por enquanto, os motoristas não precisam de uma licença especial.
Para Touriño, o Uber está revivendo nos diferentes países da América Latina o que já passou na Europa, já que a regulamentação não é tão diferente entre uma região e outra. Portanto, para ele o problema é o mesmo, um caso de concorrência desleal, que pode até mesmo se ampliar para outros setores, como o de aplicativos de pagamentos móveis ou os empréstimos bancários através dessas plataformas. “A lei tem de dar resposta às novas necessidades da sociedade e os governos não estão atuando com a rapidez com que deveriam atuar”, cobra. Em uma análise feita para a Escola de Negócios IESE, Sofía Ranchordás, professora da Universidade de Leiden, também pensa da mesma maneira. “As normas atuais foram concebidas para uma realidade completamente diferente e a política de punho de ferro poderia arruinar a inovação. Essa aposta inteligente pelo diálogo entre os agentes intervém com o objetivo de equilibrar riscos e oportunidades, assim como para proteger o interesse geral sem deixar de promover novas práticas empresariais”, diz ela. Para Touriño, as facilidades ou obstáculos que o Uber, ou qualquer outra plataforma colaborativa, venha a enfrentar ao chegar a novas regiões dependerá, precisamente, da rapidez com que os países adaptem sua legislação, conforme já estão fazendo México e Brasil.
Resta saber o que acontecerá, por exemplo, no Paraguai, onde o aplicativo já começou a cuidar dos trâmites para entrar em operação. Enquanto isso, a empresa tenta resolver sua situação na Colômbia, onde desembarcou em 2013, mas ainda não conseguiu a aprovação dos tribunais e está proibida de operar em cidades como Bogotá ou Medellín. Mesmo nos países onde a empresa conseguiu aprovação mais facilmente, como o Uruguai, onde tem permissão para concorrer com os táxis oficiais, abre-se agora uma nova batalha. Nesse caso, no âmbito trabalhista. Para o Uber isso não é novidade, já que essa mesma situação ocorreu nos Estados Unidos, onde os motoristas que usavam o aplicativo reclamaram por via judicial que se consideravam empregados da empresa, e não autônomos. O mesmo ocorreu em alguns países da Europa.
Touriño adianta que essa situação se repetirá no futuro na maior parte dos países latino-americanos, uma vez que o Uber supere a primeira barreira regulatória e consiga operar normalmente. Nesse momento, segundo o especialista, a plataforma tecnológica terá de enfrentar as demandas trabalhistas de seus condutores, já que a lei trabalhista é muito parecida em todos os países. Embora nos Estados Unidos tenha se chegado a um acordo para que os motoristas continuem a ser considerados autônomos, na Espanha essa situação seria muito diferente, já que a lei é mais protecionista com o trabalhador e, portanto, nessa jurisdição deveriam ser considerados empregados. A dúvida agora está em saber se a América Latina seguirá pelo caminho norte-americano ou europeu. “Em função do que ocorra com o Uber, seu exemplo se traduzirá para os demais setores da economia colaborativa, já que essa plataforma está abrindo o caminho e o que se vê é só a ponta do iceberg”, alega Touriño.
*Serviço gratuito disponibilizado pela Wharton, Escola de Administração da Universidade da Pensilvânia, e pela Universia, rede de universidades que tem o apoio do Banco Santander.
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