Chináfrica: um embate de culturas

Domingo senti calafrios de febre. Fiquei resfriado depois da borrasca gelada que levei num descampado, próximo ao bonito – e sem uso – estádio de futebol da Cidade do Cabo, África do Sul. Chegando ao ho...
Sustentabilidade

Domingo senti calafrios de febre. Fiquei resfriado depois da borrasca gelada que levei num descampado, próximo ao bonito – e sem uso – estádio de futebol da Cidade do Cabo, África do Sul. Chegando ao hotel, engoli uma aspirina e resolvi tomar uma ducha quente, antes de dormir. O que valia mais? Uma boa noite de sono ou assistir a mais um debate televisivo? No meio do banho, o detector de fumaça disparou. Como estou num quarto de um Bed and Breakfast próximo à recepção, chamei Gilbert.

Depois de alguma espera de porta aberta, recebendo em cheio a corrente de vento do corredor, ele chegou. Se eu não estivesse ensaboado, eu mesmo subiria na cadeira e desativaria o dispositivo ensurdecedor. Mas Gilbert, gentilíssimo, sumiu. Ora, ele foi telefonar para Mr. Kevin, o dono da pousadinha. Voltei ao chuveiro, me enxuguei e eu mesmo resolvi o problema. Quando ele voltou com a escadinha, era tarde. Mas minha febre piorou bastante ao longo da noite. Por que conto essa história?

Pois bem, quando se ouve um dos milhares de chineses que vivem no continente, todos terão uma queixa similar a fazer da África-Subsaariana. Falarão de milhões de nativos iguais a Gilbert. Dirão que lhes falta iniciativa e que é por isso que eles, os asiáticos, trazem gente da China. Relegam, portanto, aos moçambicanos e liberianos, as tarefas mais básicas e subremuneradas – motorista ou copeiro. Quando o trabalho é pesado e insalubre, os contratam a um terço do salário pago a um chinês. 

O que está por trás disso? Etnocentrismo oriental? Perversidade? Ou tem mesmo a ver com um desnível de estilos e expectativas? Na verdade, quando falamos dos grandes atores da iniciativa privada que chegam para criar obras de infraestrutura, ainda há espaço para a capacitação da mão de obra local. Mas a raia miúda que lhes serve de apoio, gente que se dedicará a hotel, restaurante e até aos cabarés precários, não se sente comprometida com tal. É aqui onde as culturas mais colidem.    

Esses pequenos empreendedores chineses – os passageiros do Cavalo de Tróia –, disseminados numa malha capilar, trabalham de sol a sol só para enriquecer e não fazem segredo disso. Ora, a postura imperial dos orientais, acoplada à absoluta falta de senso de urgência dos locais, gera conflito em todas as latitudes do imenso continente. Os chineses os chamam deliberadamente de preguiçosos e insistirão que suas mentes foram moldadas num tempo em que não havia internet nem autoestrada.

Vão além: os africanos cruzam os braços quando não tem alguém na supervisão. Ademais, uma ordem pode cair no esquecimento em dois tempos. Os nativos, por sua vez, se queixam de insalubridade, periculosidade e salários baixos. Além do mais, acham que os chineses são ríspidos de trato, o que só se agrava com a falta de um idioma comum. Enquanto isso, libaneses e indianos, que mediaram essa relação com mais tato durante séculos, assistem hoje a um jogo que não mais lhes pertence.

 

*Fernando Dourado Filho é colunista da revista AMANHÃ.

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