London, London
"Sou londrino, sou britânico, sou de fé islâmica e tenho orgulho de ser muçulmano. Sou de origem asiática, paquistanesa. Sou um pai, sou um marido, sou sofrido torcedor do Liverpool há muito tempo. Sou todas estas coisas — disse. — Mas o melhor desta cidade é que você pode ser um londrino de qualquer confissão ou de nenhuma, e aqui fazemos algo mais que tolerar: nos respeitamos, recebemos com os braços abertos" (Sadiq Khan, novo prefeito de Londres)
Não é missão fácil, semana após semana, achar um fato edificante, desses que iluminam o cenário, para compartilhar com o leitor. Pois do ponto de vista daqueles que têm genuíno apreço pela diversidade cultural do planeta, a tarefa pode se revelar ingrata. São diversos os exemplos de vizinhos que se espreitam com desconfiança e rancor. São inúmeras as fronteiras que separam os mais afortunados daqueles que anseiam por oportunidades lá onde está o dinheiro, a paz e a possibilidade de comer três vezes ao dia. Ainda são muito disseminadas as ideias pré-concebidas que associam uma gente à preguiça; outra à beligerância e mais alguma à prepotência. Nesse quadro de afunilamento de virtudes, há de se ressalvar que o "outro" é sempre visto como uma ameaça. E por isso entenda-se pessoas de etnia, credo e língua diferentes.
Mas também é certo que vez por outra o bom garimpeiro é agraciado com um achado precioso, com uma vistosa pepita de ouro que lhe alimentará a crença num final feliz. Foi essa sensação que tive aqui na bela Wroclaw, sudoeste da Polônia, ao deparar com a notícia de que o trabalhista Sadiq Khan (foto) – descendente direto de paquistaneses – se tornara o novo prefeito de uma das mais trepidantes capitais do mundo. Justo aquela que, segundo após segundo, cobra um pedágio às transações financeiras que ocorrem dos dois lados Atlântico Norte e que, dado o engenho de seu povo, se reinventa ano após ano com inusitado vigor. Pergunto: quantas podem se orgulhar de mesclar a tradição com a vanguarda como Londres? Nem bem tomou posse, o muçulmano Khan já comparecia a um culto judaico em memória do Holocausto.
Como a evocação de reminiscências sempre integra o exercício do resgate, haverei de lembrar com nitidez a primeira vez que botei os pés na capital britânica. Foi há mais de 40 anos – mais precisamente em julho de 1973 – e o que mais me impressionou foi a fauna humana aboletada em torno da estátua de Piccadilly Circus. Ali, pairando sobre nós todos, grandes luminosos anunciavam um show de David Bowie e, apesar de meus 15 anos, me juntei à multidão que foi protestar contra a visita ao Reino Unido do primeiro-ministro de Portugal, Marcelo Caetano. O Salazarismo estava nos estertores e, já ano seguinte, Portugal abraçaria a Revolução dos Cravos e se retirava da África. As colônias ficaram independentes e o país começou vida nova. Nunca até então vira tanta gente, salvo no futebol.
Naqueles anos, o Brasil passava pelo período mais agudo da repressão política. Foi candente o impacto que me causou a multidão vaiar uma autoridade constituída à porta de Buckingham e, em altos brandos, escandir em português: "Caetano, assassino". No meio dos manifestantes, guardas desarmados circulavam e nada faziam. Só os que se exaltavam a ponto de querer atirar objetos no carro oficial, eram retirados pela polícia. Alguns anos depois, acompanhei uma tomada de reféns na embaixada do Iraque. Quando a tropa de elite entrou para neutralizar a operação, um dos policiais foi ferido. Não levou o tiro fatal porque o revólver do terrorista travou. Podendo tê-lo liquidado, disse que não o fez porque naquela hora estava com raiva no coração. Era parte do treinamento jamais atirar movido ao ódio. Fiquei perplexo e comovido.
Durante todas essas décadas, tive o privilégio de ver a cidade passar por transformações auspiciosas. É certo que nos anos 1970 pairava no ar uma sensação de vaga decadência. Os serviços públicos funcionavam mal; não havia tanta diversidade gastronômica e as pessoas pareciam viver com o orçamento muito limitado, o que inibia o empreendedorismo. A paisagem física e humana era uniforme. Então veio Thatcher, a "tia Maggie". Ano após anos, a mobilidade social mostrou que ali estava em seu elemento. Árabes e indianos passaram a sentar no banco traseiro do Rolls-Royce e o britânico estiloso e acomodado virou motorista. Londres via essas transformações acontecer com a naturalidade e o pragmatismo de quem fora a capital de imenso império. Até a monarquia superou uma crise de legitimidade e foi acolhida pelos súditos.
Seria incorrer em ingenuidade subestimar os imensos desafios a que fez face a sociedade londrina nas últimas décadas. Com o fim das colônias, cidadãos de todos os rincões da Terra acorreram à cidade para lá fazer uma nova vida. Acolhê-los e integrá-los provou ser um desafio constante, como mirar um alvo móvel. Ademais, a relevância militar britânica no mundo – ainda que já não domine os mares – atraiu volta e meia a beligerância dos que se sentiam excluídos ou dos que os representavam. Como efeito disso, Londres enfrentou o terror e vive o estado de alerta como se fosse refém de uma segunda natureza. Nada que tenha obliterado o discreto charme do novo prefeito que, abolindo a gravata, fez uma bonita profissão de fé ao tomar posse. É prenúncio gritante de que a inclusão é possível e desejável.
Vive la différence!
Veja mais notícias sobre Mundo.
Comentários: