Alimentos na Ásia: tensão e riscos

A China tornou-se fator de tensão nesse mercado, conforme aumentava suas compras a partir dos anos 2000
Pelo fato da China ser a maior compradora de produtos agropecuários do Brasil, e da enorme capacidade instalada do setor no país, estruturado para atender o seu maior cliente, os riscos e tensões do abastecimento alimentar chinês afetam diretamente o Agro brasileiro

Reza a lenda que durante a "Guerra Fria" os chineses tinham em estoque uma safra de grãos, armazenados em locais à prova de bombardeios. Com as Reformas, a partir de 1980, a China reduziu a quantidade de grãos armazenados, mas não abriu mão do seu estoque de segurança. Evita informar a quantidade real estocada (se for equivalente a uma safra, a de 2020 atingiu 670 milhões de toneladas), porque ela lhe garante segurança alimentar e independência comercial em relação aos seus maiores fornecedores de alimentos – Brasil, Estados Unidos (EUA) e União Europeia (UE) –, responsáveis por 51% do total importado pela China em 2020.

Parece exagero estocar tanta comida, mas tem suas razões históricas: dezenas de milhões de pessoas morreram de fome na Ásia, nos séculos 20 (1943, na Índia; 1945, no Vietnã; e 1959-62, na China) e 19 (Índia em 1876-78, seis a dez milhões de mortos; e China em 1876-79, dez milhões de mortos nas províncias da região norte). Além dessa tragédia quase no final do século 19, a população chinesa enfrentou mais fomes de grandes proporções, durante as guerras do Ópio (1839-42 e 1956-60); a rebelião Taiping (1850-64); e a rebelião Dungan (1862-1877 e 1895-1896). Esses episódios ainda estão presentes na memória da população, desses e dos demais países asiáticos, todos eles sempre às voltas com os riscos da escassez de alimentos, por razões naturais (secas, inundações, tufões), crises econômicas, conflitos armados etc.

A China entrou no século 19 com 400 milhões de habitantes, muito mais gente na época do que a agricultura dava conta de alimentar. Estima-se que 20 milhões de pessoas morreram durante a rebelião Taiping – é razoável supor que parte expressiva desse total tenha sido de fome. Hoje o país tem 1,4 bilhão de pessoas, um bilhão a mais do que havia no século 19. Garantir alimentos em quantidade suficiente e preços acessíveis para tanta gente é responsabilidade que mantêm os governos sob tensão permanente.

Importando mais de US$ 150 bilhões de alimentos por ano, segundo o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, a China tornou-se fator de tensão nesse mercado, conforme aumentava suas compras a partir dos anos 2000. A razão desse aumento constante das importações chinesas é simples: apesar dos esforços para aumentar a sua produção de alimentos, o consumo cresceu mais rápido, por causa do crescente poder aquisitivo da sua população – no período de 1980 a 2020, quase 800 milhões de pessoas saíram da condição de pobreza na China.

Com a pandemia, a tensão no mercado mundial de alimentos aumentou: os fretes marítimos encareceram muito; mesmo caros, faltaram navios; e a demora excessiva das viagens causou prejuízos consideráveis. Agora, com o ataque militar da Rússia contra a Ucrânia, ambos grandes exportadores de grãos e fertilizantes, o risco de duplo desabastecimento virou realidade, porque a Ásia utiliza mais do que o dobro da quantidade de fertilizantes usados nas Américas e Europa, e é quem mais come no mundo.

Taco a taco com a China na quantidade de habitantes, a Índia não é páreo para os chineses quando se trata de comida: produz metade da quantidade de grãos e de batatas que o vizinho; não come carne bovina; quase não importa alimentos; e ainda se dá ao luxo de exportar arroz e trigo! Infelizmente, não se trata de mágica: a Índia é o país com mais famintos no continente asiático, de acordo com estudo publicado em 2021, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.

Pelo fato da China ser a maior compradora de produtos agropecuários do Brasil, e da enorme capacidade instalada do setor no país, estruturado para atender o seu maior cliente, os riscos e tensões do abastecimento alimentar chinês afetam diretamente o Agro brasileiro. E o Brasil como um todo, porque aqui não há mais estoque de alimentos, para garantir um mínimo de segurança ou para regular preços, e o país, que é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, segue importando arroz, feijão e trigo, por não produzir o suficiente para alimentar a população. E segue também importando fertilizantes – 75% a 95% do que utiliza –, inacreditável "tendão de Aquiles" do Agro brasileiro, que exportou quase meio trilhão de dólares de 2000 a 2020, e não conseguiu eliminar esse gargalo estratégico. Essas e outras questões sobre o mercado asiático de alimentos são alvo de análises da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e estão disponíveis no site da instituição.

Por tudo isso, os próximos meses serão angustiantes para quem atua no mercado de alimentos na Ásia, porque no conflito Rússia-Ucrânia estão diretamente envolvidos os EUA e a UE, e por tabela toda a Ásia. Provavelmente a China está preparada para esse cenário quase caótico ("China pós-Covid 19: um alerta ao agronegócio brasileiro"), por sua tradição de planejamento e por levar a segurança alimentar a sério – desde o ano passado tem emitido fortes sinais nesse sentido, e no início de março, durante as atividades parlamentares nacionais conhecidas como "Duas Sessões", novamente esse tema foi destaque.

Ao mesmo tempo, o país segue política de tolerância zero com o Covid, fechando grandes cidades e restringindo o acesso a outras, quando surgem casos confirmados de contaminação. Caso se prolongue o conflito, e falte fertilizantes para a safra 2022/23, ficará muito mais tensa a situação alimentar na Índia e em outros países da Ásia, e será "tempestade perfeita" no Brasil: quedas na produção, produtividade e rentabilidade; escassez interna e preços nas alturas; e intensa demanda internacional com cotações elevadas (em moedas sobrevalorizadas em relação ao real). Confirmando-se esse cenário assustador, a fome no Brasil poderá aumentar em proporção inédita – dos atuais 10%, para os 32% da população que sobrevivem abaixo da linha de pobreza, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgadas em 3 de dezembro de 2021.

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Terça, 23 Abril 2024

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