Um dia que jamais vou esquecer
De Paris (França)
O dia mais feliz de meus últimos 20 anos foi o 31/12/2019. Eu tinha saído de São Paulo na véspera para a Espanha. Ao chegar a Barcelona, o telefone foi inundado de mensagens: Carlos Ghosn, talvez o maior dirigente empresarial de todos os tempos, tinha conseguido fugir do Japão, país onde estava preso há 13 meses. Naquele exato momento, ele já estava em sua casa em Beirute, no Líbano. Como conseguira escapar, era outra questão. Peguei minha malinha e perdi deliberadamente o ônibus para Girona. Poderia pegar o próximo dentro de uma hora. Então fui tomar uma garrafa de espumante para celebrar a vitória da liberdade sobre o obscurantismo. A vitória do instinto de sobrevivência a despeito da pressão avassaladora de um sistema judiciário vergonhoso que o sequestra, aponta uma arma para sua têmpora e redige confissões absurdas em que você assume culpa pelo que não fez. Puro Stálin. Se você for dos raros que resistem a tanto arbítrio, será relegado a uma masmorra fria onde vai dormir num futon, numa posição pré-estabelecida, e será submetido a todas as humilhações terrenas por um Procurador que tudo pode, diante de um juiz amorfo e complacente. É assim que o Japão acerta contas com estrangeiros. Na surdina e covardemente. Puro Pearl Harbour.
Mas Carlos Ghosn, para glória do mundo livre, não se curvou a esse arbítrio. Vou resumir em poucas linhas a história que está por trás disso. Ghosn tem 66 anos e nasceu em Rondônia, de família libanesa. Passou a adolescência em Beirute onde frequentou as melhores escolas. Em idade universitária, veio morar na França, onde se formou na Politécnica. Aluno excepcional, fez um trabalho de envergadura na Michelin, em Clermont-Ferrand. Primeiro na matriz, e depois no Brasil e nos Estados Unidos, onde soergueu a operação deficitária. Nos anos 1990, aceitou ir para a Renault. Não tardou para que a montadora francesa apostasse numa internacionalização audaz, salvando a Nissan japonesa que estava à beira da falência. Ghosn foi morar em Tóquio em 1999 e virou presidente da empresa. Fechou fábricas, enxugou a operação e anunciou que renunciaria se as metas não fossem atingidas - fato inédito no Japão e não só lá, convenhamos. O sucesso foi tanto que Ghosn - agora presidente também da Renault e depois da Mitsubishi, logo da maior aliança automotiva do planeta - era objeto de ovação popular na rua. Ghosn e a família eram retratados em "mangás" e foi objeto de teses universitárias no mundo todo, fascinando pela gestão intercultural em escala planetária inaudita.
De cortador de custos e de empregos, virou o salvador de empresas ...e criador de dezenas de milhares de novos postos no mundo. Os ciúmes, como era de se esperar, eram generalizados. Quem era aquele homem da "selva brasileira" que se exprimia em quatro línguas e passava 200 noites por ano a bordo de um jato corporativo? Quem era aquele sujeito de três passaportes diante de quem reis e estadistas se curvavam, e pediam de pés juntos para que ele se estabelecesse em seus países como forma de se inserir em cadeias globais de produção? Quem era o indivíduo que recebia ofertas do presidente norte-americano para que fosse presidir alguns dos mamutes automobilísticos de Detroit contra um salário três vezes superior ao que tinha? Quem era Ghosn para ficar indiferente às firulas do patronato francês e seus modos barrocos de conviver, conspirar e bajular? Então se armou uma arapuca. Com ciúmes de seu imenso poder e carisma, o Estado francês tentou limitar-lhe a autonomia e, perigosamente, feriu os brios japoneses, ao aumentar a participação na empresa. Temendo um "take over" hostil, os japoneses armaram a vingança. Sequestraram Ghosn sob pretexto de alegadas malversações para testar a reação francesa e rasgar os acordos. A pusilanimidade trocava olhares e achara o bode expiatório. Será?
Churchill disse que os que preferiam a paz e a covardia terminaram conhecendo a guerra e a vergonha. A prisão arbitrária de Ghosn no aeroporto de Haneda convinha a todos. Aos japoneses porque não precisavam mais dos franceses e podiam rasgar acordos. Aos franceses porque se livravam de uma "avis rara" no ninho rococó do patronato, achando que sem Ghosn os japoneses honrariam o pacto. Do governo brasileiro, nada. Mas quem disse que o Brasil tem governo ou chancelaria? Solto sob fiança milionária para circular no Japão, mas impedido de ter um julgamento justo, Ghosn decidiu fazer a única coisa que podia para se defender. Contratou dois especialistas em exfiltração e evadiu-se do Japão para o único país que nunca lhe negou gratidão e reconhecimento. Ghosn vive em Beirute há um ano. Três livros sobre esses episódios saíram desde então, desmoralizando todos os seus detratores. Todos ficam com a cara no chão. Quem pagou o pato foram os acionistas da Renault e da Nissan, que viram as ações despencarem. Parte da imprensa complexada tem prazer em dizer que a fortuna de Ghosn caiu à metade. O que importa é que a primeira parte da justiça foi feita. Com a liberdade, virão as demais etapas. Sabê-lo em Beirute foi a melhor notícia do milênio para mim. Chorei de alegria.
Viva Ghosn. Viva o mérito. Vivas a quem trabalha.
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