Isabel do Vôlei, por Pedro Bial

Num testemunho que vai do réquiem à tietagem assumida, ele conta uma história que desconcerta
Na desolação das paragens corleonescas de Reggio Calabria, Isabel segurou a babá contra a promessa de ver o Papa (na foto, com Pilar nos braços)

1 Como não me canso de dizer, Pedro é meu irmão nas estrelas. Nascemos no mesmo dia, mês e ano. Ao vê-lo na televisão, sei quando se irrita ou se emociona; quando embarca na temática da entrevista ou quando, simplesmente, está cumprindo tabela cedendo seu bom nome a artistas duvidosos e a atrações que não lhe falam ao coração. Noblesse oblige.

2 Como ninguém, ele camufla essas reservas com a maestria de um longevo das câmeras, onde já provou a versatilidade em múltiplos papéis. Ao seu modo, é um prestidigitador que, além de ter senso de urgência, é industrioso e aplicado. No domínio dos livros, como sabemos, é sempre mais difícil recorrer aos artifícios imediatos da conversa em tela.

3 Livro deve ter a ver com lavrar, com lavoura logo com semeadura e tempo certo para colher. Pode a analogia não ser a única pertinente ao caso, mas os filhos de Isabel Salgado acertaram um torpedo na quina da quadra quando incubiram Pedro de contar ao mundo quem foi a mãe. Ao autor, imagino eu, restava achar o tom. Vejo-o ruminando a respeito.

4 Identificado o diapasão, o texto jorraria. Da caixa de ferramentas, surgiu, impagável, o "ipanemês" torquês, chave-mestra e desparafusadeira. Já era meio caminho. À amiga Isabel, ele se dirige com um "minh´irmã". Não economiza no "mermo", o que nos faz sentir com eles no Polis Sucos, no coração da República que os viu sair para o mundo nos anos 1970.

5 Num testemunho que vai do réquiem à tietagem assumida, Pedro conta uma história que desconcerta. É como uma música que nós conhecêssemos de cor a ponto de entoá-la em coro. Mas que, antes do livro, não nos ocorria cantarolá-la de olho na partitura. É isso o que a ode amorosa nos dá na costura de pontos descosidos dos amores, da entrega e da ira santa.

6 Da menina desengonçada que foi jogar vôlei no Flamengo à treinadora dos filhos na areia, a estrada é longa e vara o globo e não falo do biscoito de polvilho. Isabel era encanto e irreverência. Versão atlética de Leila Diniz, era namoradeira, mãe leoa e não tinha medo de cara feia. Que o diga Nuzman, um czar sensível às rachaduras no império olímpico.

7 Algumas histórias desafiam as limitações masculinas de se organizar no meio do que, para nós, seria puro caos. Pode-se imaginar uma menina de 19 anos ir para a Itália com uma filha de colo, cujo pai sumira no anonimato dos livre atiradores? E que ela tenha reeditado a experiência com mais duas crianças no hermético Japão dos anos 1980?

8 Musa da liga nipônica, ela renovou o contrato, desta feita com babás a tiracolo. É impagável ouvi-la contar a experiência com os maneirismos e a hierarquia de vestiário, que remete a uma espécie de sumô de esbeltas. Depois, voltou à Itália e, na desolação das paragens corleonescas de Reggio Calabria, segurou a babá contra a promessa de ver o Papa.

9 Pedro nos leva à intimidade de portas sem cadeados da casa da Gávea; aos rompantes amorosos que explodiram nas areias da Califórnia ou que ribombaram nas figuras morigeradas de parceiros elegantes e acolhedores. Não bastassem os quatro filhos, Isabel foi a Ribeirão Preto para adotar Alisson confiante de que o amor prevalece onde os mortais só enxergam risco.

10 Isabel e Ipanema se fundem magicamente. Impossível esquecer Galvão, o guru que caminhava no calçadão enquanto o cachorro refrescava as patinhas na espuma da água. Ou o mendigo invisível que, surrado pela polícia, foi resgatado pela saúde civil de Isabel que nasceu com o senso de justiça das almas arrebatadas, que falam grosso e enxergam fino.

Isabel subia à rede no sexto mês de gestação. Arranjava tempo para todos e falava olhando nos olhos do interlocutor. Longe de ser um panegírico, Pedro passa ao largo da tentação laudatória. Mas não esconde a admiração pela cidadã vigilante, embalada por uma noção de igualitarismo tal que terceirizava até a senha do banco e, na vizinhança, comprava fiado.

Isabel era rebelde e chegava atrasada. Só chegou cedo para a morte, há quase três anos. Leiam o livro. É lindo.

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Sábado, 20 Setembro 2025

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