Bye bye, Cacá

Em uma expressão casual, a contribuição do cineasta fora das telas
Cacá refere-se a seus detratores: "quando eu ouço essas pessoas falarem, parece que eu estou vendo os policiais que eu encontrei na Censura. (...) Tanto faz você ser censurado por bandeira branca ou bandeira azul"

Os especialistas que façam a retrospectiva da obra de Cacá Diegues (1940-2025), cineasta morto no último dia 14. Eu fico com a expressão que cunhou, meio por acaso, numa entrevista ao Estadão em fins dos anos 1970: "patrulha ideológica". Referia-se à vigilância que militantes e artistas exerciam sobre as obras alheias, a fim de se assegurar que eram suficientemente brasileiras, engajadas e não comerciais – dignas, portanto, de aplauso, independentemente do que oferecessem em qualidade estética ou apelo popular. Cacá, categórico, repetia Brecht: "a função social do espetáculo é divertir".

Não sei se Cacá era versado no mundo virtual, mas, em caso positivo, deve ter sentido um arrepio ao ver a tal patrulha transmutada em múltiplas brigadas de supervisão e controle do que é exibido e dito no ambiente digital. Uma empresa divulga uma foto inocente de sua equipe reunida. Problema? Não há diversidade étnica, social ou sexual em seus quadros. Um jornalista tem seu passado de mau marido revelado num podcast. Por que não alijá-lo de suas funções na empresa da qual é sócio?. Uma atriz cotada ao Oscar deixa um rastro de tuítes preconceituosos no ar. Hora de boicotar a película e vetar-lhe o prêmio ('Emilia Pérez': do triunfo em Cannes à rejeição do público), certo?

Convicções pessoais, travestidas de bem comum, são impingidas à força aos negócios, às artes e aos indivíduos, quando nada mais são do que...convicções pessoais. Não há boa-fé, liberdade de escolha e expressão ou mera separação entre sujeito e obra capaz de funcionar como argumento contra tamanha vontade de mudar o mundo na marra.

Mudar o mundo ou posar de vestal? Antes de cineastas serem vítimas de sentinelas do idealismo, músicos sofreram a mesma pressão. E coube a Roberto Carlos, surpreendentemente, sair-se com uma lúcida assertiva a respeito de seus colegas: "se os compositores e cantores que adotaram posições fossem radicais de verdade, melhor que entrassem para as guerrilhas. Se continuam fazendo música é porque não são radicais, não é verdade?". Marcus Valle arrematou, em uma canção oportunamente batizada de "A Resposta": "falar do morro morando de frente pro mar / não vai fazer ninguém melhorar".

Hoje, o que Cacá apelidou de patrulha ideológica recebe o nome de hipocondria moral, sinalização de virtude (Sinalização de virtude – Wikipédia, a enciclopédia livre), epidemia de drama ('Há uma epidemia de drama, o mundo inteiro é o nosso palco para sermos recompensados com likes', diz psicólogo) ou pura e simplesmente "lacração". Sua consequência é o chamado cancelamento, uma espécie de opróbrio social, uma mácula pública eterna enquanto dure a memória coletiva ou o alcance das buscas do Google.

Na mesma célebre entrevista, Cacá refere-se a seus detratores: "quando eu ouço essas pessoas falarem, parece que eu estou vendo os policiais que eu encontrei na Censura. (...) Tanto faz você ser censurado por bandeira branca ou bandeira azul".

Tanto faz mesmo. 

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Quinta, 20 Fevereiro 2025

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