Gastronomia e resistência

Semana passada não se falou de outra coisa em todo o país: a OMS atestou com todas as letras que os defumados e embutidos – enchidos aqui em Portugal – são comprovadamente cancerígenos. E que tudo o que se diga em contrário, é normalmente patrocinado...

Semana passada não se falou de outra coisa em todo o país: a OMS atestou com todas as letras que os defumados e embutidos – enchidos aqui em Portugal – são comprovadamente cancerígenos. E que tudo o que se diga em contrário, é normalmente patrocinado por entidades de lobby e grupos de pressão da indústria. Nessa mesma categoria, num patamar apenas mais moderado, foram enquadradas as carnes vermelhas de forma geral. As autoridades disseram, ademais, que os níveis de consumo que o leigo julga moderados já são, em qualquer caso, muito mais elevados do que o tolerável para que não se sucumba à terrível enfermidade. Como era de se esperar, a notícia causou comoção num país reconhecido pela culinária exuberante e pela glutonice de sua gente.
 
Nesse contexto, assisti a inúmeros debates televisivos em que as pessoas só faltavam ir às vias de fato por conta da notícia. A celeuma estava muito mais acalorada do que a queda do gabinete de direita e a chegada ao poder da coalizão socialista. Ora, o poder é efêmero. Mas as delícias culinárias da Península são eternas. Vi senhores octogenários dizer que aquilo era uma sandice. Pois mal se lembravam do dia em que não tivessem consumido farinheiras, paios, presuntos, fiambres, salpicões ou chouriços. E que nada disso os tinha impedido de chegar em excelente forma aos 80 anos. Outra senhora dizia que essa conspiração contra os símbolos mais caros de Portugal só pode ser coisa do FMI ou de invejosos porque, para ela, o sinônimo da felicidade terrena era comer as alheiras que fazia sua avó, uma portuguesa de Mirandela.
 
Diante desses argumentos que puxavam aplausos generalizados e olhos rasos d´água, os pobres médicos tentavam explicar que era dever deles advertir a população. Era uma forma de manter a saúde pública em condições de propiciar bom atendimento a todos e evitar a comoção que um diagnóstico desses engendra. Na falta de querer abolir o consumo dessas iguarias, por que não moderar e se exercitar mais? Por que não comer mais saladas e frutas e colorir a alimentação? Mas para cada tirada de bom senso, vinha uma enxurrada de queixas e melancolia contra essa verdadeira conspiração que se urdia contra Portugal. Não se noticiou em nenhum jornal que eu tenha lido como o fato repercutiu em outros países. O alerta foi tomado como uma afronta localizada e dirigida a artesãos honestos e há muito estabelecidos.

Conversando com Paulo Amorim, um conhecido de anos e amante da boa mesa, ele disse que essas ondas são periódicas e que é bem possível que dentro em breve saia um estudo dizendo todo o contrário. Então me veio à baila um anúncio institucional que eu via na televisão espanhola há uns dez anos atrás. Um homem de branco, da Sociedade Espanhola de Cardiologia, fazia a apologia do presunto "pata negra". Segundo ele, comer duas ou três fatias ao dia era fundamental para manter os níveis mínimos de miríade de taxas vitais. Em suma, mexer com o significado dos alimentos diante dos povos é cutucar fera com vara curta. Já vi gritas em defesa de certificações de origem as mais variadas. Colocar na berlinda um pedaço de linguiça, é questionar o modo de vida dos ancestrais e fraudar a pureza do imaginário infantil.
 
Logo, comida é cultura. E somos, em grande medida, o que comemos e bebemos.       

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Quinta, 28 Março 2024

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