Bandeira branca, amor?
À primeira vista, estávamos diante de uma pequena joia do racionalismo mckinseyano. Quando apresentado, em fins de abril, o plano de distanciamento controlado do governo do Rio Grande do Sul era uma resposta embasada e engenhosa à necessidade de conciliar um mínimo de normalidade social e de atividade econômica à preservação da capacidade de atendimento do sistema de saúde. Tanto que chamou a atenção de outros Estados, que o utilizaram para elaborar os seus próprios protocolos de saída da quarentena.
Mas, como sabem todos aqueles que um dia tiveram de elaborar planejamentos e conceber modelos de avaliação, o teste final da adequação de uma ideia só ocorre na vida real – e, nela, o distanciamento controlado gaúcho padeceu.
Primeiro, foi o dia de divulgação dos dados que pautariam os protocolos a vigorar na semana seguinte, definido para o sábado. Depois, a própria consistência das informações – um município "esquecia" de digitar uma alta hospitalar e, pimba!, teria de suspender todas as atividades por uma semana, até que o dado fosse corrigido.
Sensível a este problema, o governo abriu a possibilidade de recurso. A divulgação foi antecipada para quinta-feira, de modo que os municípios pudessem apresentar justificativas ou pedir revisão dos números. Tudo aparentemente muito justo e razoável. Porém, uma vez examinados os recursos, não raro o estado dormia na quinta-feira com a maioria de seus municípios em "risco alto" (bandeira vermelha) e acordava na segunda-feira seguinte em "risco médio" (bandeira laranja). Para alívio de empresários e prefeitos, mas desconfiança da opinião pública: em questão de dias, com medidas administrativas, o risco sanitário milagrosamente caía – sabe-se lá se por fragilidade dos registros ou por pressão política.
Houve também a sensação de injustiça. A divisão do Estado em regiões parecia óbvia, até. Logo, contudo, começaram a aparecer as exceções. Município X, com muitos casos, está na região 1, e com todo o comércio fechado. Porém, é vizinho da cidade Y, da região 2, em que nenhum infectado foi reportado, o que permitia o funcionamento de tudo. Resultado? Habitantes de X vão a Y fazer compras, levando com eles seu dinheiro e o vírus. Lembremos um episódio mais específico e de repercussão: em Porto Alegre, fechou-se tudo porque os hospitais estavam lotados, graças aos municípios da região metropolitana que mandavam para a capital os seus doentes. Por que não bloquear os acessos dos vizinhos à cidade, então, pensavam os empresários porto-alegrenses?
Depois, houve a dificuldade de combinar as decisões estaduais com a vida empresarial concreta. O governo pode, em tese, fechar todo o comércio de uma cidade por uma semana para reabri-lo na seguinte. Mas...e os funcionários? Se tiveram contrato de trabalho suspenso, uma vez voltando ao batente, não poderiam ser "encostados" novamente ou ter carga horária reduzida. Fora os problemas com estoque. Como garantir giro de mercadorias e abastecimento adequados se uma semana depois pode-se ter de fechar as portas por tempo indeterminado?
Acrescente-se a frustração de expectativa. O plano de distanciamento controlado foi apresentado em fins de abril, quando o Estado completava um difícil, ainda que tolerável, mês de quarentena. A esperança era de que ela tinha sido imprescindível para preparar o sistema de saúde para o que viria a seguir, os meses de inverno. Ou seja, de que a vida normal voltaria aos poucos, de maneira controlada, e se restabeleceria (quase) totalmente no segundo semestre. Não foi o que se viu. À expectativa frustrada, somou-se a exaustão da reclusão. E, principalmente, a imperiosa necessidade de trabalhar para ganhar o sustento.
Decisões aparentemente contraditórias também não ajudaram. O Estado ingressava na sua fase mais difícil, mas, subitamente, o governador autorizava o retorno dos jogos de futebol profissional. Pode-se argumentar que o universo do futebol é relativamente pequeno, restrito, e tem condições de montar protocolos de saúde seguros e de ser fiscalizado a contento. Porém, o argumento para abertura e fechamento dos estabelecimentos sempre foi a de sua essencialidade – o que gerou a desconfiança de que os critérios eram todos muito objetivos até que um grupo de pressão fosse bater na porta do Palácio Piratini.
Não faço esse arrazoado todo para criticar o plano, que ainda me parece bem fundamentado e foi elaborado sob a liderança de uma servidora pública sobre a qual há muito boas referências (saiba mais aqui). Nem para desabonar técnicos do governo do Estado ou mesmo os chefes de executivo estadual ou municipais – não gostaria de estar na pele de nenhum deles. Faço-o apenas para salientar que, tanto na seara pública quanto privada, planos, modelos, esquemas, critérios de classificação e de métricas precisam se mostrar funcionais. Por isso, sempre que possível, fazer implantações-piloto é tão útil. No caso da pandemia, infelizmente, isso não era possível – e o que nos resta é apenas extrair lições dessa experiência toda.
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