Uma Helena de Manoel Carlos
Certa vez, perguntaram ao presidente norte-americano Ronald Reagan se sua carreira de ator, anterior à política, havia lhe sido útil no desempenho do cargo. Reagan quase inverteu a lógica da inquirição: disse que não entendia como alguém poderia exercer a presidência sem, antes, ter sido um intérprete de personagens.
A afirmação do falecido mandatário, em tese, deveria valer para qualquer posto público, inclusive o de ministro ou secretário de Estado – mas não foi o que se viu na entrevista de Regina Duarte à CNN, na última quinta-feira (vídeo aqui).
À parte as especulações maldosas sobre uso de medicamentos ou necessidade de intervenção psiquiátrica que proliferaram nas redes sociais, a entrevista foi a demonstração cabal da incapacidade da secretária de cultura, a despeito de seus 50 anos de carreira como atriz, de representar a personagem de gestora pública diante das câmeras, ainda que por alguns minutos. Regina Duarte revelou-se tal como seus filhos e amigos mais chegados temiam antes da assunção ao cargo (aqui, para assinantes) - ingenuamente espontânea, beirando a falta de noção -, justamente em uma função (e em um momento) em que tais atributos são proibitivos.
O resultado já entrou para o anedotário da política brasileira: uma figura pouco familiarizada com os meandros da própria atividade, a ponto de ter de ler medidas recém-tomadas pela própria secretaria; confundindo representação institucional com relações pessoais ("eu nunca estive com Aldir Blanc"); e, o mais surpreendente, incapaz de fugir de temas espinhosos – que ela mesma trouxe à baila, faça-se justiça - tão ao gosto do jornalismo palaciano quanto do das antigas revistas de fofoca. Uma falta de malícia incompatível com alguém que, ao longo da carreira, deve ter enfrentado repórteres ávidos por declarações bombásticas dúzias de vezes.
Regina monopolizou tanto as atenções pela sua performance infeliz que outros papelões passaram quase despercebidos. Como os da apresentadora Daniela Lima, que encarnou canhestra e demagogicamente a âncora indignada, e da atriz Maitê Proença, que tentou emprestar ares dramáticos a um depoimento em que cobrava medidas de apoio à classe artística - logo ela, que vive de pensão do Estado e fez toda sua carreira no bem-bom da Globo. Eterna protagonista, Regina funcionou de escada para inúmeros figurantes, como se veria também no dia seguinte (mais repercussões aqui e neste link).
Alguma lição para aqueles que vivem na planície da vida corporativa? Certamente. Li uma vez que, nas organizações, pagam-nos para fazer um trabalho, mas desempenhamos dois: o contratado e o teatral. Mostrar-se ocupado, achar graça da piada do chefe, fingir preocupação, exalar confiança quando se está assustado ou fazer-se de sensível a problemas que pouco nos importam: faz parte do nosso show diário, e dificilmente sobrevive-se - ou, pelo menos, se evolui - numa organização sem desempenhá-lo a contento. Todos os que jamais passaram perto de um palco ou set de gravação aprendem isso no dia a dia. Admira ver alguém que tenha feito sua brilhante trajetória neles não desconfiar de que teria de acionar o modo atriz logo em Brasília.
Ou, quem sabe, não tenhamos percebido que se tratava, sim, de uma grande representação, e a personagem estivesse ali: uma legítima Helena de Manoel Carlos, de coração aberto e otimismo Poliana, quando o roteiro e o cenário, infelizmente, pediam uma Malu Mulher - indignada, decidida e pronta para a luta.
Menos mal que não era a Viúva Porcina.
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Comentários: 1
Ótima análise, André. Parabéns.