Sobre ser Ronnie Von
Desde que mexeram em alguma coisa no sistema de transmissão da televisão, fiquei reduzido a uma dúzia de canais da TV aberta. Destes, oito transmitem programas evangélicos em tempo integral. De vez em quando, passo alguns minutos me entretendo com pastores paramentados de trajes rituais judaicos. Invariavelmente, pedem dinheiro, mas também prometem muito para quem se dispuser a oferecer o pouco que tem. Um deles, não pestaneja quando entrevista testemunhas e quando estas dizem que, tendo recitado uma oração e adquirido certa chave que destrava a prosperidade, o telefone começou a tocar de imediato e a pequena empresa de que são proprietárias foi inundada por pedidos milionários. Muitos aludem até à pronta realização de sonhos de consumo e quase sempre falam de chácaras, coberturas e carros importados. Nessas horas, fico me perguntando se os veículos nacionais continuam assim tão ruins. Mas nem só dessas emissões eu vivo. Tem mais.
Nesse contexto, um canal chamado TVT é o que pode haver de hilário, especialmente quando fazem debates. Desfraldando bandeiras que julgam populares ou vanguardistas, falam de um certo genocídio de populações negras que estaria se abatendo sobre São Paulo a céu aberto. Incapazes de denunciar os atravessadores de imóveis desocupados que comandam operações criminosas contra pagamento de aluguel, atribuem o descalabro ao governo federal. No afã de dar voz a quem não tem, levam ao ar uma programação artística sofrível. Nas entrevistas, a tônica é criminalizar as chamadas forças da reação que tentam entregar o Brasil à sanha das multinacionais, como se falava nos anos 1960. Ex-dignatários presos são considerados heróis da Pátria e tudo o que represente nadar a contracorrente do bom senso lhes parece válido para defender os trabalhadores que dizem representar. Até a automação do metrô é tida por homicida. Noite após noite, Juca Kfouri brada: "desesperar jamais".
O que quero dizer, em suma, é que esses programas garantem aquela cota de diversão discernível por trás do simulacro de tragédias, de vidas esfarrapadas e por sobre os escombros de ideologias já carcomidas pela experiência. O paradoxo de minha eclética grade televisiva, contudo, é que o único programa de entretenimento que teria à mão – um certo "Todo seu" , comandado por Ronnie Von e que vai ao ar pela TV Gazeta –, me traz sim alguma angústia, cujas raízes são difusas. Na verdade, aos 74 anos, o apresentador consegue fazer bem um pouco de tudo. Já não canta "A praça", música eternamente associada à sua imagem nos anos 1960, mas se sai bastante bem em outros quadros. Assim sendo, fiel à pauta de variedades vigente no mundo, tem seção de gastronomia, fofoca, cinema, entrevista, merchandising das bugigangas de praxe e, como não, a estampa simpática do boa praça Ronnie, cioso em soltar piscadelas para "bonitinhas e bonitões" para que mantenham a sintonia e não o abandonem.
Isso dito, de onde vem meu desconforto? Da necessidade que o calejado "entertainer" tem de não deixar escapar uma única chance de se mostrar virtuoso, sensível, culto e bem nascido. Meu Deus, como deve ser desgastante brandir a todo momento que os jovens talentos de quaisquer domínios são seus "sobrinhos" e que os conhece de bebês. Que é "sommelier" de longo curso e, ali no ar, fala como iniciado diante da atitude referendadora e beatífica dos convidados. Que não saberia viver sem flores, sobre as quais dita erudição, no afã de provar que homem que se preza tem o dever de distinguir gerânios de orquídeas. Que ele mesmo vai às lojas escolher a lingerie da esposa e que as vendedoras louvam aquele cuidado libidinoso, que ele insinua ser um misto de erotismo com zelo paternal. Que é aviador de longo curso e quem é pego desprevenido pensa que ele já pilotou o Concorde. Que a chave do sucesso do relacionamento homem-mulher é a reiteração de fórmulas melífluas. Enfim, que ninguém é mais fino ou tão prendado quanto ele.
Outro terreno afim em que certa dose de egolatria se manifesta é na forma sub-reptícia que ele tem de insinuar que é amigo de todo mundo que conta. Não duvido, pode até ser mesmo. Mas há algo de "snicky" – desculpem, me falta a palavra exata em português – na forma como ele apõe a moldura de suas influências e afinidades. Essa semana mesmo levou um convidado para falar de mel. Com uma colherzinha, provou um pouquinho de cada variedade. Desde uma do Maranhão até outra da Malásia. Mas o foco não era o mel. O foco era Ronnie Von degustando mel, se é que essa sutileza se explica. Emitindo comentários anódinos, fazia caras e bocas para, por fim, coroar o quadro com o que talvez estivesse guardado na manga desde o começo: "Hum, não vivo sem mel, adoro. Aliás, tem um amigo meu, o Washington Olivetto, que vive dizendo que eu sou a pessoa mais doce que ele conhece". Acredite quem quiser: tão empostado isso me soou que, por um momento, tive pena do velho Ronnie, tão bonito e simpático.
No fundo, isso se deve a que já não é tarefa fácil alguém manter a assertividade, ou a dúvida, perante o mundo e o passar dos anos. Alimentar uma "persona", contudo, mesmo que a televisão a isso o obrigue, deve ser extenuante. Nessas horas, sinceramente, prefiro abraçar a vocação de sapo empedernido à de príncipe encantado.
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