O amor em desuso

Aceitei dar no Recife uma aula inaugural para estudantes de Relações Internacionais no próximo dia 9 de fevereiro. Pois bem, ontem, enquanto aguardava no restaurante um dos organizadores do evento – que versará sobre aspectos geopolíticos e intercult...
O amor em desuso

Aceitei dar no Recife uma aula inaugural para estudantes de Relações Internacionais no próximo dia 9 de fevereiro. Pois bem, ontem, enquanto aguardava no restaurante um dos organizadores do evento – que versará sobre aspectos geopolíticos e interculturais da Europa do Leste – reencontrei um amigo de ginásio que continua sendo a personificação da franqueza absoluta, quase cândida, que sempre foi sua marca inconfundível. Perguntando o que eu fazia na terra, mal ouviu minhas explicações e logo se apressou em dizer que se mudara para a vizinha Maceió, Alagoas, mas que o arrependimento já o corroía a ponto de querer sair de lá na primeira oportunidade e voltar para o Recife. Adiantou que nada tinha a ver com a aprazível cidade em que, até pouco tempo atrás, estivera muito a gosto, e cujo povo adorava. O problema era outro. Ele poderia até me dar uma palhinha, se eu tivesse tempo.       

Confesso que depois de 35 anos de vida em São Paulo, fiquei algo desacostumado com a rapidez com que os nordestinos entram em esferas muito íntimas de suas vidas, pouco importando se não veem o interlocutor há décadas. Convidei-o então para sentar enquanto aguardava o outro comensal e lá desatou ele um arrazoado de tristeza. O que acontecera? Pois bem, padecera de uma miragem chamada retomada da vida conjugal. Isso porque o reencontro com uma mulher de nossa geração vinha se revelando um retumbante fiasco diante do que ele chamou de "calcificação" dos valores individuais da meia idade. "Duas partes inteiras já não fazem mais uma laranja, meu amigo. O que daí resultam são duas laranjas e ponto. Um casal que se preza precisa de complementação, não de concorrência". Aquilo me soava familiar, não havia dúvida, bem que poderia ouvi-lo um pouco.

Ora, eu tinha chegado ao restaurante com antecedência para rascunhar num guardanapo de papel uma espécie de plano de aula. Pensava em propor ao professor que me convidara abrir os trabalhos com as fronteiras mais ao Leste e falar sobre a sensação de incerteza que ali veem provocando as diatribes de Trump sobre a obsolescência da OTAN.  Pois bem, em menos de cinco minutos, lá estava eu tomado pelas divagações daquele homem caloroso e "bon vivant", sentencioso e bem humorado. Uma conversa daquela, por curta que viesse a ser, merecia uma dose de uísque com gelo, bebida de lei na bela capital pernambucana. "Vou aceitar, Fernando, mas vai ser uma dose só, mesmo porque posso me empolgar e ficar falando até a noite". Em dois tempos, o garçom trouxe o pedido e ele tomou o primeiro gole como se por ele ansiasse há muito tempo.   

Pois bem, continuou, tudo começou quando ele a reencontrara num seminário jurídico em Alagoas. A relação não custou a engrenar e ele acorria às sextas-feiras até a praia de Pajuçara onde ela tinha um apartamento bem cuidado, cerveja gelada, sururu fresco e muito amor para dar. Antes do raiar do dia da segunda-feira, ele voltava para o Recife ao volante e retomava a vida de sempre. Ocorre que não se passou muito tempo até que, já nas terças-feiras, ela lhe telefonasse e dissesse que chegaria a Pernambuco no dia seguinte, pois lhe surgira um compromisso de última hora. Ora, sendo assim, tencionava ficar até o fim da semana, voltando para Maceió no domingo, ou mesmo na segunda cedo. Que tal? O que é que ele podia responder? Que sim, ora, que era um prazer. Mas a partir de certa recorrência, a hospitalidade passou a ser da boca para fora. Ele explicou a razão. 

"Foi nessa hora que cometi o primeiro erro, Fernando. Deveria ter dito que tinha uma vida para tocar e que a presença dela me tiraria do eixo da disciplina alimentar, dos exercícios, do encontro com os amigos e até mesmo da leitura de livros, meu passatempo mais caro. Mas que mulher iria entender isso? Não ela, te garanto". Ele foi rápido em terminar a primeira dose e como eu recebera uma mensagem de que o professor estava atrasado devido ao trânsito tremendo da cidade, lhe ofereci uma segunda que ele aceitou com brilho nos olhos: "À medida que essa rotina tomou forma, e como eu tinha mais coisas em Maceió do que ela no Recife, propus me mudar para lá. Não somos mais meninos, temos 60 anos e são quase quatro horas de carro a meu ritmo. Era portanto o caso de juntar forças para fazer um pedaço de caminho juntos, como ela dizia". 

Agora eu ficara curioso com o andamento da história. Embora sabendo-o meio fanfarrão, nada há que a idade não corrija. E tudo até então me parecera bom senso puro. Foi minha vez de entrar no segundo uísque para ouvi-lo em sintonia: "Pois bem, eu já estava instalado em Maceió há uns três meses e vinha fazendo de tudo para adaptar minhas rotinas daqui às de lá, para que tivéssemos tempo de convívio e paz de espírito. Ao casamento em si, não vinha faltando nada, te garanto. Mas foi então que os mecanismos da compulsão entraram em funcionamento nessa mulher. E isso a gente só sabe quando vive junto mesmo. Pois foi então que essa criatura passou a inventar semana sim semana não uma viagem. Assim, do nada e para o nada. Uma hora era porque as milhas iam expirar. Outra por conta de uma promoção. Resultado: eu saíra de meu foco e de meus referenciais para nada". 

Foi nessa hora que o professor chegou. É claro que teríamos elementos ali para muitas horas de conversa, mas expirara o tempo para a pauta amorosa. Pedindo desculpas para fazer um arremate, ele concluiu bem a seu estilo: "Não estou decretando o fim do amor para nossa geração. Não me entenda mal. Acho só que cada um deve ficar no seu galho e evitar tentar a experiência da coabitação. Isso não dá certo, é um desperdício de energia e de expectativa. Por querer reeditar o que era bom e recomendável ao vinte e tantos anos, você paga um preço caro depois de maduro. Não é culpa de ninguém. É que o jogo das autonomias termina por acirrar ânimos e castigar de amargura nossos velhos corações. Portanto, amigo, se calhar de cruzar com mais alguém em seu caminho, não traia sua biblioteca e seus domínios. Pois aos 60, nem todo mundo amadureceu por igual".   

Então nos despedimos com um abraço e eu pude atacar o tema central do almoço. Não sem refletir na originalidade das digressões de meu amigo sobre a solidão a dois, e sobre a imperfeição natural do ser humano. Nos casais como nas empresas, se não há um alinhamento de missão e uma busca diuturna de ajuste de foco, é inevitável o esfacelamento e o desestímulo. Empresas ainda podem recorrer à recuperação judicial. Casais, seja de jovens ou maduros, só contarão mesmo com uma retumbante falência, por melhores que tenham sido os propósitos de partida. Pois é difícil na vida criar um meio-termo entre a participação na vida do outro e a demanda sôfrega por sinais de vida. Ora, do momento que se parte para o tudo ou nada, é óbvio que o resultado será nada. Mesmo porque ninguém quer ver sua vida se transformar num inferno. Sorte a meu amigo.       


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Quinta, 21 Novembro 2024

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