Mudança de prioridades
De Paris (França)
Muita gente se pergunta como lidar com a angústia da incerteza desses dias. Optei, no meu caso, pela hipótese do mal menor. Tinha feito planos para 2020? Inúmeros. Quantos deles resistirão à destruição em cadeia da Covid-19? Poucos, quase nenhum. Em que medida isso me aflige? Imensamente. E o que faço dessa frustração? Sublimo-a, pensando que tudo ainda estará de bom tamanho se eu não morrer na epidemia. Há exagero na preocupação? Nenhum. Tenho 62 anos, sou hipertenso, asmático e muito fora do peso. Um prato cheio. Demais, estou no epicentro da crise no mundo. Logo, se driblar incólume o coronavírus e todo o exuberante pacote de maldades que o cerca, terá sido uma das maiores vitórias de minha vida. E, como tal, estarei habilitado a recomeçar. A juntar os cacos das ilusões perdidas. Nunca foi tão verdadeiro dizer que enquanto há vida, há esperança. São expressões que só ganham sentido no front. Fora dele, hoje sei, são pura retórica.
À distância, evito sobretudo pensar nos meus. E no terrível efeito em cadeia que os devastaria se ao menos um elo dessa corrente se rompesse. Sendo eu o mais remoto de todos eles, e tendo levado uma vida "in absentia", seria uma baixa suportável. Mas o que dizer dos outros? Como não pensar em mamãe, cuja alegria de vida vem suplantando todos os percalços do confinamento, sem sequer ir às consultas médicas que lhe afiançam a longevidade e a boa forma? Nessas horas, me volto para meu pequeno mundo de tarefas estruturadas e tento manter a rotina. Escrevo todo dia, mas não o dia todo. Alterno as modalidades. Ora um pequeno ensaio, ora uma crônica ou um post no Facebook para me sentir próximo das pessoas pelas redes sociais. Na verdade, há uma busca sôfrega por tudo o que possa proporcionar satisfação imediata. Como pensar em plantar se o desfecho dos fatos mostra que certas mesmo estavam as cigarras, e não as diligentes formigas, coitadas.
E mais: faz sentido terminar o livro que comecei ano passado? Sobrará na sequência da pandemia algum interesse que não a contemple e seu macabro pacote de consequências? Dificilmente. Incerto quanto ao futuro, me debruço sobre o passado. Se é uma oportunidade única para colocar uma lente de aumento em nosso percurso, para nos penitenciarmos das falhas eventuais e inevitáveis, só a sobrevida justifica esse esforço. Ou então, estoicamente, que encaremos o novo estado de fatos e absorvamos o choque. Paris voltará a ser Paris? Ou essa é uma realidade em desmonte? Voltaremos a ficar sentados lado a lado uns dos outros nos campos de futebol, nas salas de teatro, nos cafés em horas de pico? Dificilmente, porque algo de fundamental mudou. O que será de meu trabalho, do pagamento do plano de saúde, do futuro de meus alunos, de todos os sonhos de que direta ou indiretamente participei? Não sei. Só sei que preciso sobreviver. Para, aí sim, contar as coisas como as vi e vivi.
Quem sabe um dia Paris para mim ainda não volte a ser uma festa?
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Comentários: 1
Sempre teremos Paris, Fernando.