Luz cortada
Cheguei de viagem a meu apartamento paulistano e lá estava o porteiro rindo de um canto a outro da boca. Antes mesmo de me passar a correspondência, já foi dizendo com todos os dentes amarelados de nicotina: "Cortaram a luz do apartamento do senhor". Entendo sem dificuldade o motivo de tanto júbilo. Como ele e seus companheiros de portaria já protagonizaram todo tipo de trapalhada, especialmente em função do medo sobrenatural que têm da síndica, sempre lhes digo que eles representam a desmoralização do homem nordestino. Pois como é que meia-dúzia de marmanjos da Paraíba e do Ceará podem se curvar com a beatitude de ginasianos diante das ordens da velha húngara que vez por outra publica editos ridículos nas paredes do elevador? E que os humilha sistematicamente, a ponto de transformar um sóbrio edifício numa espécie de internato. Ora, a luz cortada é ótimo ensejo para que eles me tragam uma má noticia. Igual à do vazamento de que fui informado quando estava na Armênia e quase tão boa quanto foi me despertar de madrugada para saber se a vizinha podia usar minha vaga de garagem.
Subi sem fazer maiores comentários para não lhes dar tempo de curtir o prazer. Efetivamente, mal abri a porta, encontrei uma sala diferente, sem os vestígios dos pontinhos luminosos que ornam a televisão. Ao testar o interruptor, nada. E ao abrir a geladeira, não havia vestígio do ar frio costumeiro. Pragmático, esvaziei-a, ensaquei o pouco que continha e levei os sacos à lixeira externa. Isso feito, valendo-me da última luz do dia, passei no escritório e entrei no site da AES Eletropaulo para ver o que ocorrera. Efetivamente, as contas de fevereiro e março não tinham sido pagas. Ali mesmo, quitei os débitos, de estratosféricos R$ 35,42 e R$ 37,02 respectivamente. Então telefonei e pedi que religassem o quanto antes, o que só aconteceria no dia seguinte. Aproveitei para lhes dizer o que me parece óbvio: parem de me mandar extratos "para simples conferência". Pois é por causa deles que termino ignorando as contas sérias. Quantas vezes não passei no caixa para pagar as contas e vi que o papelzinho de nada servia, era só uma fatura que continha informação redundante. A atendente ouviu meus apupos e falou os clichês de praxe.
Fui então ao bar tomar uma cerveja e adiei o que podia o momento de voltar para casa. Ao relatar meu infortúnio a um camarada com quem troco um cumprimento vez por outra, ele disse o óbvio: eu deveria autorizar débito em conta corrente. Então expliquei que isso ia além de minha compreensão. Nos anos 1990, autorizei uma operadora de TV a cabo a ser paga nessa modalidade. Ao conferir os extratos, para minha desolação, havia cobranças em duplicidade, antecipação de parcelas relativas a meses futuros e valores nem sempre coincidentes com os do contrato. Desde então, chamei todas as contas para minha mão e ninguém me convencerá de que o sistema evoluiu e de que alguns deles simplesmente não comportam pagamentos repetidos. Se o preço a pagar por esse anacronismo é, eventualmente, ter luz e telefone cortados, paciência. Um aluno me disse dia desses que seus pais achavam cheque uma coisa absolutamente normal, mas que resistiam tenazmente a fazer pagamentos pela Internet. Ele não pareceu espantado ao saber que seus pais não eram os únicos e que o professor também integrava o time.
Mas o melhor viria logo mais. Pois ao chegar em casa, abri janelas e cortinas. Era verdade que os espumantes da geladeira estavam a temperatura ambiente e nada havia que eu pudesse fazer com eles. O gelo já virara água há muito tempo e não havia sequer uma distração para entreter aqueles momentos mortos. Sentado na velha poltrona da sala, fiquei contemplando as torres de televisão da Avenida Paulista. E de repente, percebi que o apartamento era ainda assim muito iluminado, e que eu podia fazer praticamente tudo, só com as luzes que emanavam dos prédios vizinhos. Tomei um banho frio reparador e fiquei bom tempo escorado à janela, vendo a cidade que se preparava para mais uma noite. Sem o direito sacrossanto à companhia dos livros, deitei-me. O certo é que só acordei com os primeiros raios de sol do dia seguinte, de corpo e mente descansados. Como crianças que dormem em tendas improvisadas no quintal de casa, tirei grande alegria dessa singela aventura. E confesso que foi com certa desolação que, ao chegar na noite seguinte ao apartamento, constatei que tudo estava normalizado e que a Eletropaulo religara a energia.
Desse dia em diante, decidi que vou passar uma noite a cada quinze dias assim. De preferência, com a geladeira em funcionamento, Pelo menos ela e, talvez, uma luzinha de cabeceira. Como dizia meu saudoso terapeuta, "só depende de você".
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