Gente em viagem

No último ano, talvez tenha passado mais tempo no exterior do que no Brasil. Lembro sem grande esforço de viagens a pelo menos 16 países (Finlândia, Letônia, Estônia, Lituânia, Hungria, Alemanha, Áustria, Eslováquia, França, Portugal, Chile, Repúblic...
Gente em viagem

No último ano, talvez tenha passado mais tempo no exterior do que no Brasil. Lembro sem grande esforço de viagens a pelo menos 16 países (Finlândia, Letônia, Estônia, Lituânia, Hungria, Alemanha, Áustria, Eslováquia, França, Portugal, Chile, República Tcheca, Estados Unidos, Suíça, Itália e Espanha), algumas delas bastante demoradas, como foram as temporadas em Estrasburgo de outubro a dezembro. Sozinho – a maior parte do tempo – ou acompanhado (durante o período de Natal e Ano Novo), não sou um turista, mas um viajante. Pouco me importa saber quantos degraus levam ao topo da catedral ou quantas vezes a igrejinha foi construída e reconstruída no bojo de terremotos, guerras ou depredações. Como já disse, viajo para me conhecer por meio de experiências e reflexões, e não para a contemplação de coisas que estão aos borbotões na internet. Isso dito, e até por dever de ofício, observo muito. Diluído no anonimato dos cafés, hoje resolvi catalogar alguns tipos clássicos de pessoas em viagem. Quem sabe meu esforço não ajude a entender melhor o que está por trás de cada um dos perfis. 

a) Tudo pelo grupo – Trata-se de um pessoal interessante de se observar. Quando se trata de asiáticos, seguem um líder de bandeirinha em punho, obedientemente, e nada farão (sequer uma pergunta) que possa comprometer a harmonia do coletivo. Europeus em excursão, salvo os que vieram de camadas mais carentes da população, não se sujeitam ao império das fotografias e tampouco ficam fazendo pose diante de alamedas de castelos. No geral, dirigem perguntas e interagem com o guia que para eles é um mero "primus inter pares", e não o líder inquestionável que personifica aos olhos orientais. Brasileiros, certamente, correm em raia própria. Mesmo numa pequena família de quatro pessoas, é possível e provável que os interesses individuais de um ou de outro prevaleçam. Então, estes entrarão numa loja ou irão ao banheiro, indiferentes às metas fixadas para a etapa. Apressar o passo, mesmo no frio, é mal visto por nordestinos. Desabituados a caminhar, no imaginário deles "correr é coisa para ladrão". Convém então desacelerar o passo, o que piora as dores lombares. "Passear" pressupõe progredir devagar e em manada, como paquidermes na savana.

b) Lobos solitários – Trata-se da categoria mais instigante das pessoas em viagem. É aqui que se enquadram aquelas de feição mais artística e menos imediatista. De bem na própria companhia, acordam sem as tensões inerentes à categoria acima. Normalmente bastante seguros quanto a alguns dos aspectos que paralisam os menos experientes, o dia deles rende uma enormidade. Os almoços são apreciados em sua plenitude, sem a necessidade de ter de explicar em dez idiomas as diferenças existentes entre rúcula, brócolis e escarola. Sofrem bastante quando precisam abrir mão de seus espaços sagrados para se adaptar a um esquema coletivo (em geral só aceitam fazer isso para um círculo mínimo de familiares ou quando são pagos para ir a compromissos profissionais), e mesmo viagens a dois podem ser penosas. Sua segurança soa acintosa aos menos assertivos que, por sua vez, se sentem achatados e diminuídos. Como não podem acusar o lobo solitário de incorrer em erro, pois lhes falta repertório para tal, preferem dizer que aqueles lhes subtraem espaços, que os sufoca, que não lhes dão tempo para tomar suas próprias decisões;  

c) Os inseguros – Para eles, tudo à volta é mais ou menos hostil. Chegam aos lugares sem dar sequer um "bom dia". Pelo contrário, baixam a cabeça quando entram no elevador e ficam até dez minutos matutando se vão pagar um sanduíche com dinheiro ou cartão, pouco importando que a fila esteja se tornando quilométrica atrás deles. Podem se dividir em duas categorias: os incautos e os medicados. Os primeiros pagam mais caro por não se sentir a gosto de perguntar se há opções mais baratas e são capazes de sacrificar um dia inteiro, só por medo de manifestar sua vontade, mesmo porque ela "pode não estar certa'. Igualmente binários, os medicados ou diagnosticados têm a vantagem de conseguir um mínimo de autonomia. Ouviram de seus analistas que, dada a incapacidade de interagir com o meio, devem priorizar seu interesse e só ele. O egoísmo é sua maior conquista terapêutica. Estabelecida essa navegabilidade, tendem a ser menos pesados para lobos solitários e/ou coletivistas. Seu grande foco são as "coisas" de pedra, uma ou outra paisagem, e dados biográficos de monarcas medievais que se apagarão na mesma noite.

d) Os apaixonados – Trata-se de uma categoria extremamente desgastante para quem é o alvo das atenções. Para ela, pouco importa se o casal está em Tóquio ou Quixeramobim, importante é o outro. Você pode lhes apontar cenas hilariantes, paisagens que encantariam qualquer diretor de fotografia, mas o foco delas é estritamente o companheiro. "Você me ama?" "Você casaria comigo?" "Você já esteve aqui com alguém?" "Acho que a última noite foi perfeita. Concorda?" "Você quer que eu mude de perfume?" É excruciante a companhia dessa variante de inseguros. Uma queixa que você faça quanto ao caminho escolhido, ou a falta de um elogio sobre o vestido para a soirée da ópera, e eis que o mundo desaba. "Acho que precisamos conversar". Se você é um lobo solitário, você pensará nessas horas em como deve ser reconfortante beber cicuta e cair duro no chão. Desinteressados pela cidade onde estão, seus pontos de realização se resumem aos locais de congraçamento: cama, bar, restaurante ou paisagens fotogênicas . É comum que perguntem durante a viagem se a pessoa não desistiu ali mesmo da próxima;

e) Os tecno-dependentes – Nunca é demais abrir um espaço para essa categoria que engloba pelo menos duas vertentes. Aqueles para quem a tecnologia é um fim em si próprio e os que terceirizaram por completo o cérebro em favor da voz dos sintetizadores e das dicas digitalizadas dos aplicativos. Em ambos os casos, as consultas diárias ao celular ultrapassam as 100 vezes ao dia. Envergonhados da adicção, alguns podem escapar até o banheiro para acompanhar com discrição a quantas andam suas redes. No primeiro grupo, estão aqueles que estão o tempo todo comprando chips e para quem nada pode ser tão mágico numa viagem do que visitar uma loja da Apple. Na segunda categoria, o céu é o limite. Digamos que você está no carro e pretende chegar à torre Eiffel. Pois bem, você a vê à sua direita. Mas, por alguma razão, o GPS manda você atravessar o Sena e ir até Aulnay-sous-Bois, no norte de Paris. Pois bem, você ignora  o que seus olhos viram e vai até Aulnay-sous-Bois porque, para essa gente, "a tecnologia não falha". Mesmo para comer um sanduíche delicioso, a opção só vale se for referendada por algum site.

Isso posto, certo mesmo é que poucas experiências são tão reveladoras da alma alheia quanto a das viagens. Assim, é importante fixar alguns protocolos para situações de estresse. Da mesma forma que as empresas redigem estatutos enquanto tudo vai bem entre os sócios, é vital que as circunstâncias sejam antevistas como forma de gerir situações de trauma em que as pessoas possam se sentir lesadas em suas boas intenções. A única maneira de assegurar que o prazer será maior do que a tensão, ainda é fazer sua mochila e decolar sozinho. Assim como uma fruta começa a morrer quando é tirada do pé, uma viagem a dois ou em grupo começa a fenecer no aeroporto de partida. Se a conta para baixo é inevitável, um bom acordo prévio limará o estresse e o desgaste. É claro que há casos em que as expectativas são superadas ou mesmo aqueles em que as pessoas acham que a vida é assim mesmo, e que uns dias de tensão integram o pacote de ser falível e humano. Tem gente mais condescendente com essa linha do que outras. Desgastes de viagem, contudo, à medida em que envelhecemos, ficam lavrados em pedra. 

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Quinta, 12 Dezembro 2024

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