A incrível história de Eli Cohen
Assisti semana passada a "The spy", seriado da Netflix, em que o britânico Sacha Baron Cohen encarna um convincente Eli Cohen, o lendário espião a serviço de Israel que, tendo feito um tremendo estrago na inteligência militar síria, foi descoberto devido às transmissões de rádio que fazia de casa, justo quando sua missão chegava ao fim. Tal falta lhe valeu enforcamento em praça pública em Damasco, a despeito dos apelos que vieram até do papa Paulo VI, e a desmoralização de Hafez-el-Assad, pai de Bashar, que dele chegou a cogitar fazer ministro-adjunto da Defesa. O espião, na verdade, era egípcio de nascimento (Alexandria) e só foi para Israel nos anos 1950. Treinado para falar árabe à moda síria, diferente de seu sotaque de origem, criou um personagem que vivera em Buenos Aires como próspero comerciante sírio, na concatenação minuciosa de elementos que lhe permitissem chegar por cima a Damasco, onde logo estava engastado nos altos escalões.
Um detalhe mais do que todos me chamou a atenção nessa boa emissão. Trata-se da cena em que, durante breve passagem por Israel, das pouquíssimas que fez, ele foi com a esposa comprar uma televisão. Por alguma razão, o segurança da loja lhe pediu a nota de compra e/ou uma peça de identidade. Irritado, ele fez uma cena de todo incompatível com as provações de sangue frio a que vinha sendo submetido há anos, vivendo para lá do Golã, e tendo de enfrentar situações que derreteriam o aço dos nervos mais temperados. Por que ele tem aquela explosão? Pois bem, para além do estresse a que estava submetido, contou muito uma componente intercultural a que poucos atentam. Trata-se de você imantar-se da cultura em que está infiltrado, ou que mais o desafia, e não saber se desvencilhar da persona que você encarna nela, mesmo quando está fora da bolha. É como um ator que durante as filmagens fala e age como o personagem que ele é na tela.
Ora, o Eli Cohen espião vinha sendo bajulado pelas mais altas patentes sírias e estava imantado das prerrogativas de um homem poderoso e intocável, fiel ao estilo vigente em países onde é muito grande a distância de poder. Papel este, aliás, que Eli não deve ter custado muito a incorporar mesmo porque era um judeu egípcio, logo sefaradita, o que o deixava mais em seu elemento num meio autoritário. Ora, Israel já naquela época era um país de feições universalistas, com "establishment" majoritariamente europeu, o que coibia na vida civil os transbordamentos próprios das culturas do "sabe com quem você está falando?". A reação de Eli, pois, causou espécie até à esposa, ela também vinda de matrizes culturais "masculinas", visto que era judia iraquiana. Muitos detalhes da série parecem bem pensados e gostei da evolução da trama, das pegadas inteligentes de psicologia intercultural, que dão tempero a tudo. Portanto, vale a pena ver.
Para finalizar, um dia falarei aqui sobre o grande espião que foi Sir Richard Burton, que conseguiu se infiltrar em Meca como peregrino muçulmano. Mas esta fica para outra hora. Entrementes, veja "The spy" e me diga o que achou.
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