Gaúchos: muito além do Grenal
Passei a vida observando povos em diferentes latitudes do globo. Na maioria dos casos, por serem marcadamente dessemelhantes de mim – na língua, hábitos à mesa, cor da pele, jeito de ser, atitude e vestimenta –, sempre foi mais fácil pintar um quadro sobre "como eles são". Estranhos à nossa realidade, o leitor se renderá facilmente à descrição de homens de pele amarelada e de estatura média. Que falam um idioma tonal em que as palavras se parecem, e cujo significado dependerá da modulação da voz. De mulheres que cobrem a boca com as mãos em concha ao sorrir, e pegam pedacinhos de peixe cru na ponta de bastões de madeira. De quem traja em casa uma espécie de quimono chamado "yukata" e que balança a cabeça em assentimento a cada cinco segundos, logo 12 vezes por minuto. Diante disso, qualquer um dirá: é um asiático, com grandes chances de ser japonês.
É claro que o exercício se torna mais complicado quando se trata de pessoas que falam a mesma língua que a gente, salvo por algumas exceções mais notórias; que assistem aos mesmos canais de televisão noite após noite e que são etnicamente muito parecidas a milhões de outros nacionais. É o caso de nordestinos, sulistas e nortistas no território brasileiro, se não quisermos abrir uma segmentação especial para o Centro-Oeste e o Sudeste, onde, em cidades como São Paulo, temos uma amostragem tão heterogênea que torna qualquer exercício divinatório uma aventura fadada ao fracasso. Mas o que me mobiliza hoje é colocar uma lente de aumento nos gaúchos – tanto sul-rio-grandenses quanto os da "diáspora" sulista e do Centro-Oeste, em sua data mais cara, a Revolução Farroupilha.
Quando criança, vivendo no Recife, o Rio Grande do Sul estava representado por uma cuia de chimarrão que meu pai trouxera de suas andanças por cidades tão longínquas quanto Bagé. Chegava-nos pela propaganda da Varig que falava de "o Rio Guaíba, quem vê não esquece jamais", e cujo voo RG 321 ligava o Recife a Porto Alegre via Congonhas. Nos almoços de família, quando papai estava nostálgico, havia uma menção ao vento minuano e eu tinha uma foto meio clássica em que envergava umas bombachas e um lenço vermelho no pescoço, que uma amiga de mamãe trouxera de presente de lá. Falava-se que naquela terra onde o Brasil acabava as pessoas diziam "Tchê" para tudo – e ninguém sabia ao certo o que significava, dependia da entonação –, que as pessoas comiam churrasco até no café da manhã e que as mulheres eram simplesmente lindas.
Lá pelos 20 anos, apareceram os primeiros amigos gaúchos, dois caras de Lagoa Vermelha que andavam com uma garrafa térmica sob o braço durante o dia e bebiam litros de Serramalte nas noites de Brasília. Falavam como Kleiton e Kledir, e eram pessoas despojadas e simples, solidárias e emotivas. Havia lá no fundo um lado meio arisco, que traía um certo provincianismo, mas se via que era gente com quem se podia contar. E que jamais enganaria quem quer que fosse com duas meias verdades. Eles também gostavam um bocado de mim e foi da boca deles que ouvi que gaúchos e pernambucanos eram os dois povos que realmente se diferenciavam no Brasil. "Tchê, o gaúcho é o pernambucano a cavalo", ouvi pela primeira vez. Nos momentos cruciais da vida, o amigo José Francisco Barbosa, 80 anos de dignidade pelotense, radicado no Rio de Janeiro, foi pessoa providencial quando precisei.
Então começaram as viagens. E com elas, mais amigos e amigas especiais. Como especiais? Especiais porque eram únicas. Em primeiro lugar, as mulheres eram deslumbrantes, mas totalmente inconscientes da própria beleza, o que só agrava. Em segundo, porque falavam com a frontalidade que só as pouco belas usam, o que acrescentava à atração. Os amigos eram também dos mais leais. De vez em quando me chamavam para programas em Santa Catarina ou em Punta del Este, quando cruzávamos de carro a reserva do Taim. A rigor, parecia que os gaúchos tinham uma espécie de "Lebensraum" – um espaço vital – todo próprio, que começava na periferia de Curitiba e terminava em Montevidéu. Depois, passei a vê-los no oeste da Bahia, seguindo o São Francisco e, diziam acompanhavam o Araguaia e o Tocantins, até Rondônia. Ora, não eram os paulistas os "bandeirantes"? Parecia que não mais.
Em toda essa rota, proliferavam centros que cultuavam as tradições da terra distante. Era como se uma diáspora tivesse ocorrido, em que a veneração às raízes permanecesse como viga mestra de certo fundamentalismo. Porto Alegre era a Jerusalém. Aquilo tinha muito de pernambucano para mim, já que também somos um povo de grande plasticidade e universalismo mas, lá no fundo, profundamente arraigados ao chão de origem, embalados pela convicção bairrista de que, no fundo, lugar melhor não há. Não é por outra razão que só gaúchos e pernambucanos cantam seus hinos estaduais antes dos jogos de futebol, com um fervor que faz com que o Hino Nacional soe quase mecânico. De tanta identidade, nasceram relações perenes. É tão forte o que nos solda que prescinde de confirmações e palavrório. Basta ver minha relação com o Grupo AMANHÃ, que já vai para a maioridade absoluta: 18 anos.
Os gaúchos para mim foram sobretudo os que conheci, mas também aqueles de quem ouvi falar pela boca de outros gaúchos. Barbosinha falava com orgulho de Mozart Victor Russomano, seu conterrâneo de Pelotas. Gostava muito de Viana Moog. "O Érico Veríssimo disse a ele que quando morrer, o filho vai deslanchar. Mas enquanto ele e a Mafalda forem vivos, ele vai ficar tocando saxofone." Barbosinha adorava o senador Flores da Cunha, de quem era amigo no Jockey Clube do Rio. Uma vez me confidenciou que ficara chocado da primeira vez que fora a Pernambuco. "Tchê, um conterrâneo teu, um homem poderoso, disse que o Getúlio tinha acabado com o Brasil porque agora os trabalhadores o olhavam nos olhos. Eu preferi silenciar. Mas nunca me senti tão getulista quanto naquele dia." Assim como defendia o pintor Iberê Camargo: "Nas circunstâncias em que ele matou aquele homem, qualquer um teria feito o mesmo.”
Foi por volta dessa época que percebi que os gaúchos não gostavam que falássemos mal de outros gaúchos. Um conhecido de Vacaria queria brigar com um goiano que falou mal de Brizola. "Mas tu és Brizolista?", perguntei. "Jamais. Mas o Brizola foi ascensorista na Rua da Praia. Tem história, tchê. Não é qualquer um que pode falar dele. Nem do Jango, se queres saber." Daí talvez a lição que o também gaúcho de Jaguarão Cordeiro de Farias passou ao deputado Thales Ramalho, quando este destratou Prestes, dizendo que estava esclerosado. Cordeiro, que fora interventor em Pernambuco e se tornara adversário de Prestes, não deixou barato. "Thales, o capitão é um grande brasileiro. É um homem da História e só por ela pode ser julgado. Não será você a inverter a ordem dos fatos." Será que era por isso que Paulo Brossard atropelava os ritos e ia aos coquetéis do Itamaraty em plena Era Geisel? "Não, é porque é glutão", dizia meu também amigo Nilo Coelho.
Nem sempre se constituía uma unanimidade em torno do Rio Grande do Sul. A Varig orgulhava o Brasil, mas crescera e se viabilizara em cima de um crime. "É imperdoável o que fizeram com a Panair. A Varig um dia vai pagar por esse carma espúrio", dizia papai. E pagou. Outro "establishment" gaúcho que impõe respeito, mas também reservas é o de técnicos de futebol. "Felipão e Tite são semelhantes como duas gotas de água. Na verdade, são rematados sentimentais. E isso impede-os muitas vezes de enxergar o jogo." Mas são vitoriosos. Nenhuma unanimidade se igualará a Falcão, em cujo hotel Mario Quintana morava de graça. Que outro jogador faria isso por um poeta? E, do lado do Grêmio, há Everaldo, o lateral do tricampeonato. É sempre desconcertante para o resto do Brasil descobrir que um estado tão europeu tem negros. Lupicínio Rodrigues e Ronaldinho Gaúcho acorrem em defesa da tese.
A essa altura da vida, não há como negar minha ligação sentimental com essa parte do Brasil que sempre tive em conta tão especial. Daí talvez meu choque e perplexidade ao constatar que nem tudo vai muito bem no núcleo duro da identidade gaúcha, que é o Rio Grande do Sul. O software é poderoso. Do "Negrinho do pastoreio", que aprendíamos no primário, ao vigor do turismo rural da Serra, tudo vai bem. No hardware, choca constatar algumas avarias. O mau estado das finanças estaduais foi um choque para quem achava que tudo em Porto Alegre irradiava excelência. O marasmo econômico também pontua alto. E é particularmente pungente ver que o crime organizado conseguiu aterrorizar uma das capitais mais aprazíveis do Brasil, tida como ideal de vida para muitos. Mas o que são esses episódios diante de uma identidade resiliente, que para em reverência a seus valores no 20 de Setembro?
São essas as considerações mal costuradas que faço no calor da sugestão de meu editor, um paranaense que exsuda gauchismo por todos os poros. É na pessoa dele, que homenageio esses amigos que fiz. E que me fazem até hoje pensar no quão maravilhoso seria se o Brasil incorporasse na sua essência o que sobra na identidade gaúcha: convivialidade, nativismo, lealdade, frontalidade, inclusão e uma fraternidade que só percebe quem vê de longe.
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