Chore no começo para sorrir no fim

Nunca fiz segredo de que não gosto do futebol feminino. Já disse aqui que talvez ele se torne uma opção mais palatável para os exigentes se houver uma drástica mudança de regras, a começar pela diminuição das dimensões do gramado e das traves (relemb...
Chore no começo para sorrir no fim

Nunca fiz segredo de que não gosto do futebol feminino. Já disse aqui que talvez ele se torne uma opção mais palatável para os exigentes se houver uma drástica mudança de regras, a começar pela diminuição das dimensões do gramado e das traves (relembre o post aqui). Interessante é que essa questão agora está muito politizada e parece que não gostar de futebol feminino é mal visto, e que a boa norma manda que o sujeito aja com sabujice e hipocrisia mesmo que boceje diante da televisão, sob pena de ser escorraçado em praça pública, e de ser acoimado de machista e bobagens afins. Homens melífluos e demagogos, desses que buscam freneticamente o aplauso das mulheres até por esperteza e conveniência, são os primeiros a se declarar em crise de abstinência se não assistem a um joguinho de futebol feminino todo dia. Essa é uma conduta excrescente, quase canalha, fruto da lógica maniqueísta em que estamos encalacrados. Seria o mesmo que me forçar a gostar de críquete (um tédio) ou beisebol (outro) para sair bem na foto.   

Mas ora, adoro a alagoana Marta (foto). Nunca a vi jogando bola por mais de 15 minutos, mesmo porque uma Marta só não faz verão, mas gosto do jeitão dela, da personalidade, da língua sem peias, do carisma dessa moça que cavou um espaço na história do futebol, ao se tornar a atleta que mais gols fez em Copas do Mundo de ambos os gêneros. Foi nesse contexto que ouvi no Twitter uma entrevista que ela deu em que se dirigia às novas atletas da modalidade que estão em começo de carreira. Admitindo que as francesas finalizaram melhor e mereceram classificar-se (eis aqui outra conduta louvável e mais rara no futebol masculino), Marta fez uma espécie de exortação, pedindo que suas jovens colegas de ofício treinem mais e se sacrifiquem mais hoje em nome do futuro. "Chore no começo para sorrir no fim", o que é sem dúvida uma bela formulação. Embora pareça óbvia, a frase de Marta encerra um recado fundamental para os jovens em qualquer parte do mundo. E isso tem uma raiz cultural.  

Explico-me. Quando a Ásia começou a fervilhar como motor do mundo nos anos 1980, eu visitava-a pelo menos três vezes ao ano, percorrendo quase todos os países entre o Japão e a Indonésia. Enquanto os gurus americanos tentavam entender o que estava por trás de tanto progresso, apontando aqui e acolá fatores isolados de forma algo reducionista, ouvi certa vez de um indiano que tinha negócios em todo o Sudeste do continente que o essencial era observar a noção do "prazer adiado", uma prática enraizada nos orientais. Longe de ser uma ode ao sexo tântrico, adiar o usufruto de benesses que lhe facultam o dinheiro ou a educação, tempera o espírito, equilibra a ansiedade e o trajeto passa a ser fonte de felicidade, e não apenas a chegada ao destino. "Nossa cultura de poupança está muito atrelada a isso. Guarde hoje para comprar mais barato mais adiante, e/ou até que a vontade tenha se revelado sólida, e não mero impulso".  

Ora, sou de uma época em que os jovens executivos eram fascinados pelos chamados "fringe benefits." Expressão hoje em desuso, ela era uma febre nos anos 1980. Isso significava que além do salário, o contratado tinha bom plano de saúde, seguro de vida, um carro, reembolso por combustível, prêmios por desempenho, ajuda-moradia, hotéis confortáveis quando em viagem, lugar na classe executiva dos aviões e afins. Não sei se por temperamento ou intuição, era uma pergunta que me irritava. O sujeito muitas vezes passava ao largo de questões vitais sobre o desafio que o esperava e, ansioso, atacava a questão que lhe parecia ser a mais determinante. Invariavelmente, eu respondia que não sabia ao certo, que isso lhe seria explicado pela área de RH, pois o que me assistia era deslindar o futuro, compartilhar um viés visionário e saber se ele tinha ou não aptidão para somar a um time ambicioso, para quem contas de restaurante reembolsáveis eram apenas uma parte muito pequena do todo. 

O que vejo hoje, já passado dos 60 anos, é que a cultura digital viciou as jovens gerações em buscar freneticamente a satisfação imediata. É como se houvesse a expectativa de receber muitos "likes" pelas ações mais ínfimas. A semeadura para muitos deles se resume à sólida formação que trazem de boas escolas e ao conhecimento técnico do tema. No mais, anseiam por uma ecologia à prova de frustrações e cheia de paparicos. Atletas ou não, a exortação de nossa querida Marta fica para todos os que têm entre 20 e 40 anos: vão à luta, suem a camisa, invistam em fundamentos sólidos, ignorem o senso comum, criem suas utopias e não desistam. Chorem todas as lágrimas que puderem e superem os obstáculos visíveis e aqueles que só o treino pode identificar como limitantes. E então abracem o sorriso, como faz ela, agora mundialmente consagrada. Adiar o prazer é o que de melhor nos traz  a chamada sabedoria confuciana. Mas essa é outra história. 

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Terça, 16 Abril 2024

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