Carta aberta a Eleonora Rosset
Minha querida Eleonora,
Não se assuste com o teor dessa carta. Mas sendo você minha amiga e uma das mais competentes cinéfilas brasileiras, é natural que pense em você na hora de extravasar minha indignação para com dois filmes que vi recentemente. Em assim fazendo, nem preciso pedir para que você me escute com a paciência que é toda sua, e que deriva de sua longa experiência como psicanalista. Essa benevolência já é de sua natureza.
Veja bem, semana passada São Paulo estava mais do que convidativa para quem gosta de cinema. Durante o feriado da quinta-feira, vira o argelino "A amante" de que gostei bastante. No dia seguinte, assistira a "Tully" e também gostei. Se "A câmera de Claire" foi um pouco desconcertante, saí do cinema pronto para rever meus conceitos e não me arrependo. Mas então vieram dois filmes brasileiros que me deixaram perplexo.
O primeiro deles foi um certo "Antes que eu me esqueça", protagonizado por José de Abreu (foto). Que loucura, Eleonora. Como é que as pessoas que fizeram um filme daquele não afundam embaixo das poltronas e não coram de vergonha diante de tanto clichê sem graça? Como é que se admite tanta pobreza de diálogo e roteiro tão indigente? Se as pessoas desconfiam que saiu um real de dinheiro público para aquilo, param o país.
Você viu o filme? Um senhor tem relação tensa com os filhos de 40 anos. A filha acha que ele está ficando senil e quer interditá-lo. O filho alimenta rancores e preferiu se distanciar. O velho compra um cabaré em Copacabana e para lá leva outros tantos velhinhos que jogam baralho na pracinha. O filho se reaproxima e viram bons parceiros. Um lapso de memória grave o leva finalmente à tutela judicial.
Em meio a tudo isso, o juiz pede a uma representante do Ministério Público que acompanhe a reaproximação entre pai e filho como forma de aferir, com bisonhas fotos, se há lastro de convívio suficiente entre ambos para que o último possa opinar categoricamente sobre o primeiro. O que é uma situação tão inverossímil quanto patética, dessas que não colam e que reforçam o caráter forçado da história.
Meu Deus, Eleonora, é um filme de quinta categoria. Não vou aqui estabelecer as inevitáveis comparações com os ótimos roteiros que são produzidos na Argentina e a alta qualidade cinematográfica do que nos chega de lá. Mas custo a entender como é que semelhante filme não constranja os produtores a ponto de dizerem: isso está péssimo, vamos reinventar essa história ginasiana em nome da honra.
O segundo, o tal "Paraíso perdido", me perdoe dizer, é também de uma pobreza franciscana. Acho que li em algum lugar que você conhece a diretora e não sei se me equivoco ou se, efetivamente, você lhe fez um elogio condescendente. Só posso atribuir isso à sua alma magnânima. Você sabe que muita gente se pauta por seu blog antes de ir ao cinema e uma certa generosidade a leva a suavizar nas tintas.
Pois bem, excetuadas as músicas de época – aquelas de quem viveu os anos 1970 –, e um ou outro desempenho individual melhorzinho, eis outra catástrofe do cinema nacional. Uma família, cujo patriarca é Erasmo Carlos, gerencia um cabaré das antigas. Entre páginas musicais, um policial à paisana zela pela segurança de um travesti adolescente que fora espancado. Noite após noite, a banalidade grassa como erva daninha.
No final, um simulacro de drama assoma quando aparecem evidências de um crime perdido nas brumas do tempo. Em torno de cada personagem, do Tremendão a Seu Jorge – que até manda bem –, pesa a aura do clichê de terceira categoria e a história não para de pé. Uma lástima de uma ponta a outra, dessas que derrubam para níveis abissais nossa autoestima. Espero, de novo, que não haja dinheiro público neles.
Finalizo, Eleonora, pois já te passei o essencial de minha indignação e não preciso me delongar. Falo aqui afinal com a amante da Sétima Arte, e não com a terapeuta. Concluo te perguntando: por onde temos de começar a reverter esse ciclo tão vicioso e toda essa pobreza de formulação? Sinceramente, não vejo filmes como os acima se segurarem por três dias em salas mundo afora. Nem pelo decantado "exotismo" nacional se salvam.
De mais, como se explica que um país que é um celeiro de telenovelas de categoria, que surfa a onda de uma indústria pujante e que está ancorada numa rede de televisão tão forte, parece incapaz de formar massa crítica para transitar bem por outra seara do audiovisual? Ou será que é justamente porque nos especializamos em outra vertente? Não sei, você tem a palavra e espero suas luzes para clarear essa treva de ceticismo.
De resto, perdoe-me a forma escancarada de me dirigir a você. Sinto-me como um fã que quebra os cânones da cautela e que vem a público expor sua inspiradora sem lhe fazer consulta prévia. Mas sei que seu amor ao cinema é maior do que meu jeito arrebatado de ser e que você o relevará. Fique bem e qualquer hora dessas monte um workshop sobre os grandes momentos do cinema. Teríamos lotação completa assegurada.
Um grande abraço,
Fernando
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