A vingança de Camões
Poucas semanas da história brasileira foram tão turbulentas quanto essa que se encerra. Para os que preconizam a força do audiovisual como recurso pedagógico, ela foi impecável. Quantias faraônicas de dinheiro ganharam tangibilidade aos olhos de milhões de espectadores. Essa mesma audiência foi brindada com a transmissão de retumbante confissão de culpa de um importante ex-ministro e, de quebra, ouviu estarrecida a gravação acidental da conversa de dois comparsas que, entre um copo e outro, se entregam ao exercício preferido dos embriagados: contar fanfarronices e alardear, no caso deles, os caminhos que pretendem percorrer para se safar da Justiça que tanto desprezam. Se o Brasil não for posto em pratos limpos doravante, não terá sido por falta de aviso.
Dos três episódios acima aludidos, portanto, é difícil aquilatar qual deles é o mais aberrante. Para um cinegrafista, não há dúvida de que a imagem das malas de dinheiro é o mais chamativo. Jornalistas de todo o Brasil se empenharam em demonstrar o que se poderia fazer com aquela soma e aqueles que forem jogar na loteria daqui para frente terão uma ideia precisa sobre de quanto estará em jogo. Trata-se de múltiplos de dezenas de milhões. Para um economista, as engrenagens descritas pelo ex-ministro da Fazenda seriam de maior relevância. Ao descrever como se organizava a pilhagem das estatais voltadas para a sustentação política, o patamar passa a ser o de centenas de milhões de reais. Embora as câmaras não captem, só demanda um esforço de abstração.
Por fim, temos o caso do empresário Joesley Batista com Ricardo Saud, objeto dessa reflexão. Por mais que possa soar corriqueira, ele é dos três acontecimentos o que talvez mais interesse à Justiça. O dinheiro em jogo não é tão palpável quanto nos casos anteriores, mas sabe-se que se mede na casa de muitos bilhões, ou seja, envolve milhares de milhões. Se nos três casos o contribuinte brasileiro é flagrantemente lesado, vale admitir que este último tragou para o ralo a língua portuguesa, aqui reduzida a um patoá de submundo. Não bastasse o teor das vilezas, chamam a atenção as agressões repetidas à regência e às concordâncias verbais. Bem a propósito, espero que a difusão do áudio desmonte o mito que consagra que tripudiar sobre a língua, significa triunfar nos negócios. Explico-me.
Anos atrás, quando o populismo começava a se entranhar nas fímbrias do falar brasileiro, ouvi de um intelectual uma inflamada defesa do padrão inculto e rastaquera que campeava no Brasil. A senha para a consagração dessa nova conduta partiu da esfera mais alta. Ora, se soava natural na boca do presidente Lula dizer "menas laranjas" – e ele próprio brincava com essa deficiência, chegando a tirar dividendos políticos dela –, percebi que muita gente passou a ver nesse fato a confirmação de que sucesso não combinava com o mínimo de apuro no uso da língua. Pelo contrário, "o certo era falar errado". Falar bem e escrever consoante o mínimo do padrão culto equivalia a dar mostras de elitismo ou mesmo de odioso pedantismo. Quem não se lembra da defesa que o MEC fez da fórmula "nós pega o peixe"?
No mundo dos negócios, a popularização desses hábitos cresceu em razão direta do sucesso do agronegócio, uma das melhores apostas brasileiras de todos os tempos. O glamour das colheitadeiras e as preciosas divisas geradas pela exportação do segmento consagrou um "falar caipira" que resgatava mitologias caras à nossa alma. Era como se o Jeca Tatu levasse a melhor sobre as elites urbanas que o esnobavam. Dizer como diz Joesley "confiar nimim" virou sinônimo de sabedoria da roça, ardil, intuição e sagacidade. Daí o ressurgimento do "mineirinho", do "come-quieto", todos disputando o estrelato isolado que fora ocupado durante décadas por Zé Carioca. Fato é que o falar errado passou a ser sinônimo de pragmatismo. O chamado "falar bonito" virou chacota e valia ao falante os apupos de ridículo e barroco.
Nesse contexto, o momento é propício para que nos desvencilhemos de mais um engodo. É claro que um escroque pode perfeitamente falar e escrever de forma empolada. Aliás, é comum que isso aconteça mesmo porque o maior dos psiquiatras já disse que as palavras podem ser um anteparo para ocultar a verdade. Mas o asco que inspira o conteúdo e a forma da doutrina de Joesley talvez nos ajude a concluir que nem tudo que vem do campo rescende a pureza. E que a indigência manifesta no padrão linguístico esconde miséria intelectual. Assim sendo, massacrar o português não é passaporte para o sucesso. É só um atentado civilizacional. Da mesma forma que nem sempre a toga e seu bom português acertam a mosca. Seja como for, onde quer que esteja, Camões (foto) está se sentindo vingado.
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