A morte de uma livraria
Semana passada, em plena sexta-feira, o Recife recebeu uma notícia chocante. Foi o equivalente àquele murro no boxe dito direto no queixo, que derruba o pugilista e leva o juiz a abrir a contagem de proteção. Pois bem, a livraria Cultura, localizada no Paço da Alfândega, fechou as portas depois de quase 15 anos de operação. Nos jornais, grassa o debate sobre as causas de tamanha mutilação ali mesmo no berço da cidade.
As versões são as mais variadas: velhos litígios entre locador e locatário. O advento inexorável do e-book. A decadência das lojas de rua em favor dos ambientes anódinos dos shopping centers. A invariável omissão do poder público. O arbítrio de entidades privadas que só pensam na racionalização dos custos e na maximização dos lucros. A culpa de uma clientela que não soube prestigiar o espaço enquanto ele estava vivo.
Desculpem-me dizer, mas não acredito em nenhum dos argumentos acima isoladamente. Se não estava dando lucro, mesmo porque ela tem outra loja a apenas três quilômetros de lá, a empresa teria todo o direito de fechar as portas. No mais, a verdade é que o Recife tem na memória ancestral a Livro 7, então a maior do Brasil, que valorizava as cercanias da Faculdade de Direito. E sente falta até hoje de uma similar no Centro.
Ora, a livraria Cultura do Paço da Alfândega tinha os encantos que se espera das lojas da rede. Convivialidade, café, espaços amplos, poltronas confortáveis e a primazia de o cliente poder escolher o que quiser e ler o livro ali mesmo, sem botar a mão no bolso. Aliás, a saudosa Livro 7, já há 40 anos, funcionava nesses moldes pioneiros. Mas como não poderia deixar de ser, a Cultura não estava imune a problemas de atendimento.
Certa feita, fiz lá o lançamento do livro "Nos passos e Fiszel Czeresnia e outras estórias". Foram vendidas as 150 unidades que tinham chegado da editora de São Paulo. Muita gente saiu de lá sem seus exemplares. Viajei na sequência, mas deixei em funcionamento um bem azeitado esquema de divulgação na imprensa. Mas ora, eles simplesmente não fizeram uma reposição ágil, o que foi prejudicial para o livro. Afinal, não sou Cervantes, logo inesquecível.
Outro ponto frágil, e este não me diz respeito necessariamente, reside no fato de que os autores locais só raramente estavam representados nas prateleiras, salvo se publicados por editoras de algum prestígio. Privar o comprador local de ter em suas prateleiras escritores como Paulo Gustavo, Joca Souza Leão, Clemente Rosas e tantos outros, é dar prova de tremenda miopia empresarial, e de desconexão emocional com a terra, o que é imperdoável. Onde fica o "glocal"?
Por fim, na antevéspera do fechamento fatídico, tomei um café no prédio ao lado com o escritor Homero Fonseca, um homem que irradia amor aos livros. Foi então que ele me recomendou ler "Os hereges", de Leonardo Padura. Fui até a agora morta Cultura e perguntei se eles o tinham. Não, só tinham um exemplar na livraria do shopping, ali perto. Perguntei em quanto tempo o livro poderia me chegar às mãos via motoboy, ou como quer que fosse.
"Três semanas", disse o rapaz. Então eu disse: "Amigo, com essa agilidade toda, vocês vão fechar rapidinho. E depois não venham dizer que faltou cliente". O que ouvi? O de sempre: é o regulamento, senhor, não depende de mim. Hoje ele deve estar pensando no que eu disse, certamente desconfiado de que eu já sabia o que o destino lhes reservava. Não, meu caro, eu não sabia de coisa alguma. Mas para certas evidências, ninguém precisa ser profeta.
Na África, reza um ditado que quando um ancião morre, é uma biblioteca que arde em chamas. Em qualquer cidade, quando uma livraria fecha as portas, é o luto que se abate sobre as gerações do porvir. E, de novo, ninguém precisa ser profeta para saber disso. Foi mesmo uma pena. Em parte, porém, a crônica de uma morte anunciada.
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