Cooperativismo: um sistema resiliente

Verdadeiros motores do setor primário, as cooperativas foram as principais impulsionadoras da economia no duro período recessivo que se desencadeou a partir de 2015. No quadriênio 2014-2017, por exemplo, o cooperativismo catarinense  avançou 36,5%, o...
Cooperativismo: um sistema resiliente

Verdadeiros motores do setor primário, as cooperativas foram as principais impulsionadoras da economia no duro período recessivo que se desencadeou a partir de 2015. No quadriênio 2014-2017, por exemplo, o cooperativismo catarinense  avançou 36,5%, o equivalente a mais de 9% ao ano. O mesmo fenômeno se repete em toda a região Sul. “Não há empreendimento do mundo com tanta resiliência quanto o cooperativismo”, garante Vergílio Perius, presidente do Sistema Ocergs/Sescoop, que reúne as cooperativas agropecuárias do Rio Grande do Sul. Perius se apoia em um número robusto. O cooperativismo gaúcho obteve um crescimento de receita que chegou a 38% nos últimos três anos. Se esse desempenho foi possível em meio à crise, cabe especular até onde essa expansão teria chegado se nesse período o país tivesse vivido um movimento de normalidade no comportamento da economia. 

O que faz as cooperativas resistentes diante de cenários tão desanimadores, como o que impôs pesados prejuízos à indústria e estagnação de vendas ao comércio? Uma das respostas pode estar na configuração legal do sistema, acredita Claudio Post, presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias de Santa Catarina (Fecoagro-SC). “Um dos princípios que conferem perenidade mesmo em tempos difíceis é o uso de fundos compostos pelas sobras [como se chama o lucro distribuído entre os associados ao final de cada ano fiscal] das nossas operações”, afiança.

Com essa filosofia, as cooperativas conseguiram, nos últimos anos, aproveitar os bons momentos para planejar e investir – especialmente em projetos que permitem adicionar valor à produção e libertar as organizações do mero papel de produtoras de commodities. Hoje, quase metade (48%) da receita das cooperativas agropecuárias advém da industrialização, o que dá a elas musculatura e flexibilidade para ultrapassar tempos bicudos. “Os cooperados precisam ter boas opções de renda e acesso aos mercados. As cooperativas buscaram isso com projetos de diversificação da produção e com a agroindustrialização. Em síntese, a opção do cooperativismo é pelo desenvolvimento”, sentencia José Roberto Ricken, presidente do Sistema Ocepar, que congrega as cooperativas do Paraná. 

Exemplo notório dessa postura é a transformação da soja e do milho em carnes e leite. A C.Vale (foto), de Palotina (PR), é apenas um case que demonstra como essa estratégia transformou o cooperativismo. Apostando as fichas na indústria, desde 1995, a cooperativa viu o faturamento saltar de R$ 128 milhões, duas décadas atrás, para R$ 6,9 bilhões no ano passado. O investimento também foi o principal responsável pela grande oferta de novos postos de trabalho: a C.Vale tinha 540 funcionários em meados dos anos 1990 e agora são 9 mil. “A rentabilidade melhorou, as receitas cresceram de maneira sustentável e reduzimos nossa exposição ao risco climático. Isso nos deu maior previsibilidade, o que é fundamental para quem quer investir”, analisa Alfredo Lang, presidente da C.Vale.

E como o plano da C.Vale se revelou vitorioso, a fórmula será aplicada na abertura de novas frentes. Recentemente,  a cooperativa inaugurou um frigorífico para peixes, com investimento de R$ 110 milhões. A planta tem capacidade de abate de 150 mil tilápias, mas a produção pode ser ampliada para 600 mil peixes. A C.Vale estima que a industrialização responderá por metade do faturamento no longo prazo. Hoje, ela se encontra na faixa de 25%. A cooperativa também ambiciona fortalecer sua posição no Rio Grande do Sul. A C.Vale começou a operar com os gaúchos em 2015 e acredita que há espaços para incrementar os negócios, principalmente para expandir o recebimento de grãos e comercializar máquinas e implementos. 

O desejo da C.Vale revela a necessidade da chamada intercooperação, movimento que representará um novo ganho de competitividade para o sistema cooperativista. Trata-se de um planejamento de negócios feito em conjunto por duas ou mais cooperativas. Em novembro de 2017, três das maiores cooperativas paranaenses anunciaram a união de suas marcas. Frísia, Castrolanda e Capal, de Castro, lançaram a marca Unium. A nova grife, resultado da fusão das palavras “união” e “um”, substituiu os selos das cooperativas em produtos como carnes, leite e farinha de trigo. 

A marca Unium é resultado de um modelo de negócios que concilia os interesses de diferentes cooperativas, embora elas sigam gestões independentes e continuem com cooperados próprios. “É o que chamamos de intercooperação. Estávamos buscando uma identidade para nossas marcas, que já trabalham e têm desenvolvimento conjunto”, revela o presidente da Castrolanda, Frans Borg. “A Unium surgiu da necessidade de dar empoderamento às cooperativas. E permite irmos para o mercado de forma conjunta”, complementa Renato Greidanus, que preside a Frísia. Apesar de não haver uma sede administrativa própria, os diretores não descartam uma futura fusão completa de suas grifes. Cada cooperativa tem uma participação nas diversas divisões da empresa, compartilhando algumas marcas no mercado. No segmento de lácteos, a atuação é com os produtos Colaso, Colônia Holandesa e Naturalle.  Juntas, as três cooperativas somam R$ 7 bilhões de faturamento anual.

Coincidentemente, a espinha dorsal do Plano Paraná Cooperativo 100 (PRC 100) – que tem a meta de fazer com que o faturamento das cooperativas do Estado chegue a R$ 100 bilhões em 2021 – é justamente a cooperação. O Comitê Parcerias e Alianças do PRC 100 reúne representantes de cooperativas de vários ramos que buscam ampliar as possibilidades de intercooperação. “As alianças entre cooperativas no Sul podem ser intensificadas, mas é preciso encontrar o modelo adequado para cada caso específico de intercooperação, respeitando a cultura, a autonomia e a identidade das parceiras”, avalia Ricken, da Ocepar. 

A cultura disseminada pela entidade ganha adeptos em toda a região. A Santa Clara, de Carlos Barbosa (RS), costuma fazer trabalhos de operação integrada com outras cooperativas. A Cotrisoja, de Tapera (RS), por exemplo, produz ração para a Santa Clara, que paga uma taxa pela industrialização do grão. A CCGL, de Encantado, fabrica leite em pó em troca de leite UHT da Santa Clara, o que faz com que os custos logísticos com matéria-prima diminuam. Agora, a Santa Clara está focada na construção da sua nova unidade de achocolatado que será sediada em Casca (RS), investimento de R$ 115 milhões que deve entrar em operação até dezembro. A cooperativa que faturou R$ 1,1 bilhão e distribuiu R$ 9 milhões aos seus mais de 5,5 mil associados no ano passado é dona de lojas e supermercados e tem se adaptado ao momento de baixa do varejo. “Notamos que até maio os preços estiveram 8% inferiores aos que eram praticados em igual período de 2017. O ramo de alimentos está vendendo mais itens de menor valor, mas o mercado é soberano”, conforma-se Alexandre Guerra, diretor administrativo e financeiro da Santa Clara.  

Adaptar-se às circunstâncias e manejar com destreza as ferramentas de negociação com fornecedores e clientes é a especialidade das cooperativas de excelência, caso da paranaense Coamo. José Aroldo Gallassini, que preside há 43 anos a maior cooperativa da América Latina, costuma utilizar a metáfora da toalha molhada. “Em um negócio, não queremos simplesmente comprar e vender, mas comprar e vender bem. Então, os negociantes da Coamo têm de tirar o máximo. É como se fosse uma toalha molhada: você vai torcendo, torcendo, até a última gota. Nós queremos a última gota. Nesse sentido, falamos para negociar bem. Se o cooperado fixou R$ 100, vendemos a alguém que paga o máximo possível, a última gota, R$ 105, R$ 107”, exemplifica. 

Fica no passado a noção de que cooperativas dispensam instrumentos de gestão profissional ou relativizam sua importância. No Sul e em outras regiões em que o cooperativismo se desenvolveu com ímpeto, exporta-se conhecimento. O “Encadeamento Produtivo Cooperativa Central Aurora Alimentos – Sebrae/SC: suínos, aves e leite”, por exemplo, surgiu em Santa Catarina e transformou-se em um programa nacional desde junho de 2018. Agora, também contempla o Paraná, o Rio Grande do Sul e o Mato Grosso do Sul. O Encadeamento Produtivo do agronegócio tem o objetivo de contribuir para a melhoria dos índices de produtividade e competitividade, promovendo a inserção de pequenos negócios em cadeias de valor de grandes empresas por meio de relacionamentos cooperativos. “A expectativa é muito grande com a nacionalização desse projeto no qual a propriedade rural é vista como uma empresa, levando aos empresários técnicas de gestão, inteligência em negócios e trabalho em rede, tendo em vista a melhoria do desempenho em toda a cadeia”, observa Renato Perlingeiro Salles Junior, coordenador do Programa Nacional de Encadeamento Produtivo do Sebrae Nacional.

Entre os resultados do programa está o fornecimento de produtos com maior qualidade ao consumidor final. Para 48% dos produtores rurais e das empresas encadeadas, houve aumento de receitas. O vice-presidente Neivor Canton lembra que as duas décadas do relacionamento entre a Aurora e o Sebrae foram essenciais para manter produtivas e competitivas as famílias rurais que formam a base produtiva da Cooperativa Central, sediada em Chapecó. “Graças a isso nos mantivemos no mercado nacional e internacional”, reconhece, ao anotar que as regiões onde atua a Aurora concentram a maior densidade populacional rural do Brasil.

Barreiras
Ainda que tenham muito a comemorar, especialistas acreditam que o cooperativismo pode dar um passo à frente colocando em prática o gerenciamento de riscos, conceito que tem começado a ganhar corpo no Brasil, recentemente. “As cooperativas podem se antecipar a riscos como clima ou falta de mão de obra qualificada no campo, por exemplo. Há um movimento no Sul nesse sentido por meio das OCEs (Ocepar, Ocesc e Ocergs), que dialogam entre si e trabalham um ambiente propício para essas melhores práticas”, conta Adriano Machado, sócio da PwC Brasil e especialista em agronegócio.

Na visão de quem acompanha o setor há muito tempo, o cooperativismo nacional tem, ainda, algumas barreiras a vencer – a principal delas de natureza cultural, ligada ao modo como o sistema se vê e é visto pelos brasileiros. A desinformação sobre o que é e como atua uma cooperativa ainda preocupa o Sistema OCB, que lançou em novembro de 2017 o movimento SomosCoop – uma campanha nacional de valorização das cooperativas brasileiras, de seus cooperados e empregados. A campanha tem divulgado uma webserie sobre como as cooperativas colaboram com o desenvolvimento das comunidades onde estão instaladas. As cooperativas também enviam sugestões de histórias, cases, palestras e iniciativas capazes de promover a valorização e o pleno reconhecimento do cooperativismo no Brasil. O Paraná foi o primeiro Estado do país a aderir ao movimento SomosCoop, ainda em dezembro.

Para o presidente da OCB, Márcio Lopes de Freitas, a campanha veio para ficar. “Precisamos difundir melhor o modelo e mostrar a dignidade que é ser cooperativista no país para que todos percebam isso. Até mesmo os cooperados às vezes deixam de valorizar”, reconhece. Para ele, será preciso ao menos uma década para fazer com que o cooperativismo seja mais bem reconhecido pelos brasileiros. “No país, existe uma barreira para perceber o associativismo como uma grande ideia. É que dificilmente há disposição de abrir mão de um privilégio em nome do cooperativismo, pois corporações e pessoas colocam seus interesses acima de tudo”, evidencia Paulo Pires, presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Estado do Rio Grande do Sul (Fecoagro-RS). Dilvo Grolli, presidente da Coopavel, de Cascavel (PR), lembra ainda outra virtude do sistema cooperativo: o seu papel social. “No Sul, 80% dos associados são pequenos produtores. Com isso, o cooperativismo também presta um serviço à sociedade”, ressalta Grolli. Somente no ano passsado, a cooperativa do oeste paranaense distribuiu R$ 50 milhões em sobras e antecipações e faturou R$ 2,1 bilhões. 

Para além do embate cultural, cujos resultados são lentos, existem obstáculos mais tangíveis e emergenciais. O ramo agropecuário, que representa 63% das receitas do cooperativismo, enfrenta dois problemas crônicos: a escassez de insumos e as deficiências infraestruturais. Para manter a imensa cadeia agroindustrial da avicultura, da suinocultura e da bovinocultura de leite, Santa Catarina precisa importar todos os anos entre 2,5 milhões e 3 milhões de toneladas de milho do Brasil Central ou do exterior. Essa operação impacta a competitividade do produto catarinense, afetando os criadores (na maioria, produtores integrados e associados às cooperativas) e as agroindústrias. “Também é urgente melhorar a logística de transporte com investimentos em rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e armazéns. O oeste catarinense, berço das principais empresas e cooperativas, reivindica uma ferrovia interestadual ligando Chapecó ao Centro-Oeste e uma ferrovia intraestadual unindo o extremo-oeste ao litoral”, clama Luiz Vicente Suzin, presidente da Organização das Cooperativas do Estado de Santa Catarina (Ocesc). 

No ramo da saúde, há necessidade de linhas de crédito para que as cooperativas de trabalho médico possam tomar financiamento para a construção de hospitais e aquisição de equipamentos de tecnologia de ponta. É uma situação análoga à de cooperativas do ramo de infraestrutura, que precisam de aportes para o sistema de distribuição de energia elétrica e internet. “Ao se dirigirem ao mercado financeiro, as cooperativas não possuem taxas de juros diferenciadas para captação de crédito. Isso nos leva a profissionalizar cada vez mais a gestão”, entende Jeferson Smaniotto, presidente da cooperativa de laticínios Piá. A marca tem sede em Nova Petrópolis (RS), a Capital Nacional do Cooperativismo,  em virtude de ser o berço do cooperativismo de crédito da América Latina. Foi ali que surgiu, em 1902, a Caixa de Economias e Empréstimos Amstad (atual Sicredi Pioneira RS), primeira cooperativa de crédito. Na visão de Smaniotto, um modo de enfrentar os grandes players é apostar em agregação de valor dos produtos comercializados. Nos últimos sete anos, a Piá investiu R$ 90 milhões na modernização de seus processos produtivos. Com 75% do faturamento concentrado em solo gaúcho, a cooperativa pretende expandir negócios na direção do Paraná, de Santa Catarina e de São Paulo, que juntos respondem pelos 25% restantes. Dentro de cinco anos, a Piá prevê dobrar essa fatia. Para alcançar o objetivo, a média de crescimento das receitas deve se manter em torno de 8% a 10% ao ano. Em 2018, a previsão é de um faturamento de R$ 650 milhões, justamente 8% a mais do que no ano passado. Na base da estratégia está a comercialização de itens com maior valor agregado, receita seguida por um número cada vez maior de cooperativas.  Somente em junho de 2018, pelo menos dois produtos de cooperativas foram anunciados no mercado. A Cotripal, de Panambi (RS), apresentou uma carne de hambúrguer para sua linha Angus Supreme, já temperada e rica em Ômega 3. E a Cotrirosa, de Santa Rosa (RS), passou a ter no seu mix uma linha de feijão premium selecionado criteriosamente e com grãos nobres.

Ótima reputação
O vice-presidente da Central Sicredi Sul/Sudeste, Márcio Port, gosta de comparar o cooperativismo em geral com o modo com que opera a Lojas Renner no mercado de capitais. A rede de lojas, como é sabido, foi a primeira corporation brasileira. Isso significa que a empresa não pertence a uma única pessoa, mas sim a muitas – espalhadas ao redor de todo o mundo, inclusive. “Quando os correntistas são os próprios donos do negócio, não existe caráter especulativo”, destaca o executivo. Essa é apenas uma das razões para que os juros cobrados pelas cooperativas de crédito sejam menores do que as taxas estipuladas pelos bancos tradicionais. Do mesmo modo, o índice de inadimplência também é proporcionalmente menor no sistema cooperativista. Na visão de Port, o Banco Central (BC) foi determinante para o desenvolvimento do cooperativismo de crédito no país. Segundo ele, o Brasil tem a melhor legislação para instituições financeiras cooperativas, e elas retribuem a confiança. “Temos ótima reputação com o BC”, afirma Port. A autoridade monetária tem se preocupado em colocar em pauta a agenda BC+, que busca, entre outros objetivos, a desburocratização e a inclusão financeira. Presente em muitos municípios pequenos, o Sicredi consegue ajudar o BC a cumprir parte da tarefa. No Rio Grande do Sul, por exemplo, onde dois terços das cidades têm menos de 10 mil habitantes, há muitos lugares em que 60% da população é sócia do Sicredi. “Pergunte a um morador de localidades menores quanto a alta do dólar impacta a vida dele. Ele vai responder que não, pois os efeitos demoram mais a chegar. Eles baixam a cabeça, trabalham e fazem acontecer”, entusiasma-se Port.

Hoje, Sicredi e Sicoob respondem juntos por 80% do cooperativismo de crédito no Brasil. No que depender do Sicredi, essa fatia poderá crescer ainda mais. Até 2019, o banco cooperativo – que já está presente em 21 Estados – prepara uma grande expansão em Minas Gerais. O foco é mirar o crescimento não apenas nas capitais, mas também em grandes cidades do interior. “Muita gente liga o nome do Sicredi ao meio rural, mas nada menos que 80% de nossos associados vivem no meio urbano”, revela Port. Enfim, mais uma conquista do cooperativismo, que multiplica sua força – até mesmo nas crises, ou quem sabe como a melhor resposta para elas.

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Domingo, 15 Dezembro 2024

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