Um manequim que nos sorri

Soa contraditório que, num dos momentos mais efervescentes da vida pública brasileira, em função dos múltiplos debates travados via redes sociais nos últimos dois anos, a publicidade local viva uma espécie de descolamento com a realidade, insistindo ...
Um manequim que nos sorri

Soa contraditório que, num dos momentos mais efervescentes da vida pública brasileira, em função dos múltiplos debates travados via redes sociais nos últimos dois anos, a publicidade local viva uma espécie de descolamento com a realidade, insistindo em discursos anódinos. Essa, pelo menos, é a conclusão que tirei de uma análise de Marcello Serpa, multipremiado publicitário brasileiro recém-embarcado para um período sabático nos Estados Unidos.

Segundo Serpa, em entrevista à revista TOP Magazine,  as marcas evitam surfar as polêmicas do momento, sejam elas políticas, sociais ou culturais. Possivelmente, suponho eu, por temerem a reação negativa que uma eventual tomada de posição possa causar – especialmente nas redes sociais, em que tudo se espalha, distorcidamente, e em grande velocidade. 

Mas deixemos o próprio Serpa com a palavra:

“Nos anos 1980 (...) o alimento da propaganda era a sociedade. Era uma notícia de jornal, um movimento da rua, um depoimento errado de um ministro. Aquilo virava propaganda, conteúdo. Agora estamos vivendo o momento mais emblemático (...) e a propaganda não reflete isso. Nós continuamos fazendo campanhas para inspirar as pessoas a serem melhores, mas onde se pode intercambiar as marcas (...). É tudo igual. (...) (A) marca faz um manifesto do que ela acredita. Só que as marcas estão acreditando exatamente nas mesmas coisas”.

Serpa aponta algumas oportunidades desperdiçadas:

“(...) o Brasil inteiro vive os instantes mais conturbados da história, criando coisas, imagens, memes, absolutamente fantásticos. E a propaganda não está usando isso. Eu vi alguma coisa do Habib’s fazendo uma piada sobre coxinha e mortadela, e só. Como a Sadia não fez uma coxinha recheada de mortadela? Por que a Ambev não serviu Skol, que é amarela, na manifestação do PT, e Brahma, que é vermelha, na manifestação contra a Dilma?”

O porquê dessa cautela toda, Serpa atribui ao medo:

“As marcas têm medo do massacre, de criar algum ruído, de críticas. E quando você tem medo da crítica, não faz nada.”

 Serpa é homem de criação na publicidade – e sabe-se que criadores têm um pendor pelo lado artístico da própria atividade. Não raro apaixonam-se pelas ideias mais incomuns, independentemente se alinhadas à estratégia de comunicação do cliente. A ideia vale pela ideia, e nada mais. 

 Ainda assim, um aspecto chama a atenção na fala de Serpa. O de que, do sujeito comum, estejam vindo “imagem, memes, absolutamente fantásticos” nesse momento conturbado da história brasileira. Ou seja, de que o consumidor esteja produzindo e difundindo conteúdo capaz de pautar as discussões populares, papel que, outrora, cabia aos jornalistas e aos publicitários. Se destes últimos só se espera o lugar comum, o poder da publicidade como elemento da cultura popular, algo tão prezado por Washington Olivetto, por exemplo, se dilui. E a relevância da ferramenta e de seus profissionais, decorrentemente, também.

Oliviero Toscani dizia que “a publicidade é um cadáver que nos sorri”. Marcello Serpa parece alertar que, no Brasil atual, a publicidade está mais para um manequim de loja – imóvel, neutro, idêntico em toda e qualquer vitrine – a esboçar um sorriso tímido, constrangido e temeroso.

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Sábado, 14 Dezembro 2024

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